Diário dos Açores

Rosário Girão aprecia ChrónicAçores vol. 2, 2011

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Apresentação crítica de ChrónicAçores: uma circum-navegação. Vol. I. Um verbo a conjugar: circum-navegar por Rosário Girão e Manuel J. Silva 

Absquesudore et laborenullum opus perfectum est

Se há livros que devem ser lidos e cuja releitura prodigaliza novos rumos hermenêuticos, defluindo de um redivivo “prazer do texto” que incessantemente se descobre, outros há que merecem ser estudados com denodo, como é o caso desta obra de J. Chrys Chrystello, cujo nome e sobrenome têm vindo a ser adulterados, “desde Chrysler a Christofle, Castelo, Crastelo, Perestrelo ou Costello consoante os países.” (2009: 192). Exemplo emblemático de multiculturalismo (de que CC é “confesso defensor”), claramente introduzido e firmado, em termos óbvios, pelo conceito de “circum-navegação”, ChrónicAçores é, verdade seja dita, uma obra plural e total, protagonizada por JC, alterónimo, quiçá, de CC - sua mulher, HC, “comentara, um dia, que o grande problema existencial de JC era saber qual dos dois venceria o duelo, ele ou o seu alter ego.” (2009: 179) -, sempiterno viajante, por terras reais e reinos imaginários, e “castelão” ‘atrelado’ ao seu teclado informático, para o qual vai ditando os seus périplos à medida que, pela revivescência, se vai contando...
    A estrutura circular da obra em exegese é, a este respeito, dilucidativa: abalando dos Açores, onde se encontra radicado, JC ruma até ao Oriente, não sem convidar para tal romagem o seu fiel leitor, ambos findando a epopeia marítima - “De Timor a Macau, Austrália, Brasil, Bragança até aos Açores” - no Arquipélago de origem. 
Do Ocidente para o Oriente e do Oriente mítico para o Ocidente gerador de mitos, é-nos dado deparar com um JC jornalista e “lastbut not least” e escritor. A trajetória em pauta é forçosamente escandida pela alternância de tempos verbais - o presente, o perfeito e o imperfeito -, reenviando para um antes e para um depois, delineando um ontem e um hoje, ora recuando ora avançando, socorrendo-se de analepses esclarecedoras e de almejadas prolepses (no que respeita ao leitor...) e configurando um vaivém temporal dinamicamente responsável pelo retrato sociopolítico de Portugal ao longo de, grosso modo, sessenta anos - “Voltemos de novo à matança do porco” (2009: 108); “Bom, voltando aos Açores, [...]” (2009: 111); “Voltando à Rádio Renascença e ao automobilismo” (2009: 244); “Voltando atrás no tempo [...]” (2009: 250); “[...] como veremos adiante [...]” (2009: 172). Fazendo jus ao rigor prescrito por todo e qualquer trabalho académico (mas que, nos dias de hoje, nem todo e qualquer trabalho académico detém...), valendo-se de uma ampla bibliografia caraterizadora da tese universitária e do ensaio científico, consultando uma documentação genuína, não raro de difícil acesso, destinada a evitar o papagueamento de falsas verdades geracionalmente repetidas e cristalizadas em dogmas indefetíveis, JC observa “por entre as espirais do fumo dos cigarros” (2009: 103), disseca, analisa, comenta e arquiva não só o universo circundante, mas também o seu ego, que tem a generosidade de desnudar: 
“A vida passada só fazia sentido para o ego que fora, mas já não era.” (2009: 20). 
“Por ser quem fora se tornara naquilo que hoje era.” (2009: 45). 
Paulatinamente vai esboçando o seu autorretrato de homem ateu e não agnóstico (conquanto nostálgico da fé dos tempos idos), obcecado pelo “politicamente (in)correto”, imbuído de desencanto - proveniente da quebra de ilusões e de rejeições sucessivas - perante a vida, propugnador de uma igualdade sem discriminações, inimigo de fundamentalismos ditatoriais e cumpridor escrupuloso de todas as leis. Justiceiro tenaz e inconformista ferrenho, “hedonista perfeito em perfeito levante exótico” (2009: 380), fumador, carnívoro (2009: 132) e exterminador de formigas (2009: 202), JC, poeta sonhador (2009: 237), anda “ao contrário de todo o mundo, como os caranguejos, mas em vez de andar para trás andava sempre para a frente, adiantado em relação aos restantes.” (2009: 125). Afinal, “JC é quem continua errado e não o mundo.” (2009: 209).
…, Há que destacar os capítulos consagrados à História de Timor, diacronicamente narrada e vastamente comprovada, que já havia sido, em certa medida, objeto parcial do ensaio publicado pelo Autor em 1999 e intitulado Timor Leste O Dossiê Secreto 1973-1975. Retrocedendo, na sua crítica arguta, aos métodos de Celestino da Silva, que tirava estrategicamente partido das rivalidades entre as diversas tribos, com vista à sua ulterior dominação, e que sabiamente recorria ao serviço doméstico de espionagem facultado pelas mulheres e amantes indígenas, revisitando a obra meritória de Filomeno da Câmara, na peugada do seu antecessor, e analisando o ensaio de Teófilo Duarte, suscetível de proporcionar um sólido conhecimento dos mais marcantes eventos novecentistas, vê-se o leitor confrontado - “Nem as elites nem os jovens alguma vez leram estes episódios que bem retratam a grande nação de tribos timorenses.” (2009: 410) - com a descrição da Ilha em forma de crocodilo - contada pelo poeta Fernando Sylvan (2009: 292) -, com a autodeterminação espoletada pela Revolução dos Cravos, com a criação dos principais partidos políticos de Timor, com a sempiterna oscilação entre a Indonésia, a Austrália e Portugal no papel de países colonizadores e neocolonizadores, com a independência encarada como horizonte longínquo a atingir, com as fragilizadas condições de vida dos Timorenses, advindas do racionamento dos géneros essenciais, com as dificuldades de comunicação fomentadoras do isolamento, da ignorância e da despolitização, com a inexistência de sistemas rodoviários, marítimos e aéreos, com o deficiente aproveitamento de plantações insulares (sobretudo a do café, verdadeira fonte de riqueza) e com a questão da lusofonia ou, por outras palavras, da preservação da língua e da cultura portuguesas. 
Bem interessantes, a todos os níveis, se revelam quer os comentários políticos, breves e incisivos, com que JC brinda certas notícias publicadas no Portugal Diário e na Fonte Lusa de 21 de junho de 2006, ou no Blogue Causa Nossa e no jornal Público de 25 de junho do mesmo ano, quer o balanço final da controversa situação política timorense, retoricamente martelado pela quádrupla recorrência do sintagma verbal “Foi pena...”: “Foi pena que os líderes […] pensassem serem apenas umas pequenas ondas […] Foi pena que […] não se tivessem dedicado a emprestar pás e enxadas para ocupar os guerrilheiros desocupados […] Foi pena que […] não tivessem ‘nonas’ (amantes) para lhes contar o que se passava nos quatro cantos de Timor. Foi pena que tenham sido apanhados desprevenidos por esta insurreição tão bem orquestrada pela Austrália, […]” (2009: 471).

*Continua

Chrys Chrystello*

*Jornalista, Membro Honorário Vitalício nº 297713
 

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