Diário dos Açores

De regresso ao Pico dez anos depois (8)

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O grande momento da apresentação do vinho “Cacarita, Garrafeira, 2014” estava aprazado para as sete da tarde. Era o motivo da minha ida ao Pico e tudo tinha de correr bem. Quando me encontrei com Leonardo Silva e família, após o almoço, todos se atarefavam nos preparativos. O espaço escolhido para o evento foi o Museu da Indústria Baleeira, em São Roque, para onde era preciso levar um sem número de coisas.
Quando cheguei ao museu, um belo espaço de arqueologia industrial, lembrei-me que a indústria baleeira tinha sido o refúgio de muita gente do Pico quando a vinha foi destruída pela filoxera. Agora, que já não se caçam baleias e o vinho do Pico brilha de novo, a fábrica ia ser o refúgio para a apresentação de um vinho, recordando momentos, altos e baixos, da história da ilha. Leonardo Silva não se poupou a esforços. Estava confirmada a presença das elites políticas, os produtores de vinho do Pico tinham sido todos convidados, de acordo com o princípio de que a união faz a força, e previa-se cerca de cem convidados.
Tanto Leonardo como eu tínhamos a convicção de que não se ia apresentar mais um vinho, mas dar a conhecer um novo conceito de vinho para prestígio da denominação de origem Pico. A CVR dos Açores já tinha certificado vinhos “Garrafeira”, mas eram vinhos com um ou dois anos de garrafa, enquanto este tem nove anos de garrafa.
Quando em 2016 provei o vinho, numa feira em Lisboa, gostei muito e reconheci-lhe um grande potencial de envelhecimento, pelo que sugeri a Leonardo que se esquecesse de 10% da produção num canto da garrafeira, para lançar vários anos mais tarde. Não pensei mais no assunto, mas Leonardo cumpriu à risca a minha sugestão. Quando, há vários meses, me enviou uma garrafa para provar, fiquei surpreendido, mas muito mais surpreendido fiquei com a qualidade do vinho, que parecia outro. Em vez de um diamante em bruto, como em 2016, era um diamante lapidado pelo tempo. Foi uma emoção.
Para a maioria dos consumidores em todo o mundo, os vinhos brancos são para beber jovens, pois a beleza do seu aroma perde-se rapidamente com o tempo de garrafa. Por isso, pouca gente arrisca comprar brancos velhos, com medo de estarem “passados”. Com alguns vinhos, contudo, acontece exatamente o contrário, como nos brancos do Pico (e dos Açores). Como são vinhos com muito pouco aroma enquanto jovens, não têm aroma para perder e, em vez disso, começam a ganhar aroma e complexidade ao longo da clausura em garrafa. Por outro lado, alguns aromas do envelhecimento têm o condão de disfarçar a acidez intensa do vinho jovem e tornam este menos agressivo aos palatos sensíveis. Assim aconteceu com este Cacarita 2014, que se transfigurou para melhor e permitiu descobrir uma nova faceta dos vinhos do Pico.
São estes vinhos, “na idade adulta”, que emocionam os grandes apreciadores e dão estatuto a uma denominação de origem. As grandes regiões vitícolas do mundo só são, de facto, reconhecidas como tal quando têm muitos vinhos que passam com distinção na “prova do tempo”. Não são vinhos para dar a ganhar muito dinheiro aos produtores, mas são vinhos para dar estatuto à marca, dar prestígio à denominação de origem e sofisticar o comércio, através dos leilões internacionais de vinhos raros.
Para transmitir esta mensagem aos inúmeros convidados era preciso fazer um teste convincente, pelo que se escolheu o “Curraleta, 2021” para termo de comparação. Ambos nasceram de vindimas chuvosas, para os colocar, à partida, em pé de igualdade. Recorde-se que, quando a vindima é chuvosa e a uva apodrece parcialmente, a qualidade e a longevidade do vinho ressentem-se. Curiosamente, os brancos do Pico ressentem-se muito pouco, mas ficam com cor mais carregada, quase dourados.
A apresentação do vinho pretendia, ainda, transmitir outras mensagens, tendo em conta que um vinho especial merece ser servido num ambiente especial. Em vez de um produto de consumo passa a ser um produto cultural, daí ter-se escolhido o museu e aperitivos especiais. Afortunadamente, Duarte Silva, filho de Leonardo, é chefe de cozinha com experiência internacional, pelo que aceitou o desafio de conceber  aperitivos novos, baseados nos produtos da ilha. Foi mais de um mês de trabalho e experiências, mas valeu a pena, pois foi criada uma terrina de encharéu com molho cru, um bolo de milho com alga patinha, camarões com crocante de bolo de milho e amêijoas de São Jorge com molho à Bulhão Pato. Este último, não foi tão bem conseguido como era suposto, por as amêijoas estarem no defeso e ter de se recorrer a ameijoa congelada. Com elas frescas será, decerto, uma aposta ganha.
Como manda o protocolo, foi o Diretor do Museu, Dr. Manuel Costa, a dar as boas vindas a todos, de forma entusiástica, enaltecendo a história do local. Depois, Leonardo Silva, antes de falar sobre o vinho, fez uma sentida homenagem à memória do avô e do pai, viticultores picarotos que lhe transmitiram a paixão e o gosto pelo Verdelho do Pico. Por fim, eu e o Duarte Silva explicámos os vinhos e os aperitivos.
A festa só começou, de facto, quando a família de Leonardo começou a servir os vinhos e os aperitivos aos convidados. Foi bonito! Soltaram-se as conversas, as surpresas, as risadas e muitos dos convidados ficaram incrédulos com a diferença entre o Cacarita, na idade adulta, e o Curraleta, ainda bebé. Também não foram indiferentes aos aperitivos do talentoso Duarte e, se dúvidas tinham, perceberam que o vinho num espaço cultural sabe melhor. Estamos convictos que o exemplo irá frutificar rapidamente, para prestígio e reconhecimento da Denominação de Origem PICO.


*Virgílio Loureiro é considerado como um dos mais prolíficos académicos, investigadores, enólogos e comunicadores do vinho,com uma prestigiada carreira como docente do Instituto Superior de Agronomia no domínio da Microbiologia.

 Virgílio Loureiro *

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