Diário dos Açores

Rosário Girão aprecia ChrónicAçores vol. 2, 2011 (parte 2)

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A tradição versus a inovação ou a regressão contra o progresso (e não serão as primeiras privilegiadas?) não escapam, numa perspetiva multifacetada, ao monóculo de lança em riste de JC, para o qual “a realidade já ultrapassou a ficção há muito.” (2009: 213): assim é que desfilam, em quadros visuais reforçados pela visualidade da escrita, a morosidade das viagens efetuadas entre Trás-os-Montes e o Porto (2009:31), bem como a celeridade, em termos relativos, dos antigos comboios “Foguetes”, ligando o Porto a Lisboa; a tradição de as famílias transmontanas, como a de sua Mãe, irem a banhos para a Póvoa, enquanto sua Avó e seu Pai elegiam, como estâncias de vilegiatura, as praias nortenhas da moda, como a Foz, Matosinhos, Miramar, Granja e, posteriormente, Espinho (2009: 45); a saudação amistosa dos ‘acinzentados’ cantoneiros que, no antigamente, desempeciam as bermas das estradas de uma indesejada vegetação invasora (2009: 97-98); o romantismo emanado pelos bilhetinhos sentimentais (2009: 121) que o jovem Romeu ou Lovelace endereçava às ‘encarceradas’ donzelas dos seus sonhos (batizada de Tina, neste caso concreto...), muito provavelmente tomado de empréstimo ao camiliano Amor de Perdição e Amor de Salvação ou, então, ao idealismo rural de Júlio Dinis que A Morgadinha dos Canaviais e As Pupilas do Senhor Reitor revelam à saciedade; a solicitude ancilar ou a prestabilidade das serventes ou sopeiras que, embora fardadas, se integravam naturalmente na família; a designação da bica - “Pavoni” e “Cimbalino” - no decénio de 60, que, metonimicamente, reenviava para a marca da máquina de café expresso (2009: 103).
Nos antípodas do passado mítico irrompe o presente desmistificado - “mudam-se os tempos.” (2009: 227) -, alvo certeiro da sátira cáustica e da ironia corrosiva: os cantoneiros, abandonados, deixaram o palco continental, tendo sido votadas ao olvido as suas castiças cabanas, em virtude do desaparecimento da Junta Autónoma de Estradas que, apesar dos escolhos, lá ia cumprindo a sua missão (2009: 99); a terminologia simples de antanho ‘complexificou-se’ (como é sólito dizer atualmente...), a fim de contornar eventuais réstias de complexo conotadas com as profissões mais humildes (2009: 29-30); a linha do Tua, que ofertava uma paisagem de beleza ímpar, viu-se e vê-se seriamente ameaçada, a par dos “Foguetes”, entrementes sumidos, que “apodrecem em Elvas” (2009: 210) e tendem a ser substituídos por luzidios e frenéticos TGV; quanto à vida sã da aldeia, ela dá a sensação de haver sido marginalizada, e até petrificada, - em proveito do urbanismo - num museu envidraçado, passível de visita, qual fenómeno arqueológico, pelos jovens citadinos desconhecedores da rusticidade e do primitivismo: “O campo é bonito para se passear nas férias e levar lá os putos (como quem os levava dantes ao zoológico) [...] ” (2009: 211).
Sobrelevando a análise social, eis a História que fascina JC, “saudosista desses tempos de antanho a viver ancorado no futuro” (2009: 51-52), embora conhecendo de antemão a inviabilidade de alterar a visão estereotipada e convencional dos factos históricos. Nesta conjuntura, o mais insignificante caso de vida, o mais ínfimo detalhe social e a mais prosaica questão quotidiana não deixam de se revelar propícias à sua evocação, posto que “toda a gente fala, mas ninguém se deu ao trabalho de estudar a História...” (2009: 470).
É o caso da vida da Rainha Maria Pia de Saboia (2009: 35), das conjeturas tecidas, a partir dessa utopia e ucronia conducentes ao mito da Atlântida, sobre a descoberta das Ilhas açorianas (2009: 52-53), da ‘errância’ lendária das encantadas “Sete Civitates” (2009: 56), da enumeração de certos milagres atribuídos a N. Sra. do Açor (2009: 58-59), da digressão de teor explicativo - posto que JC também é professor: “JC explica [...] ” (2009: 200) - pelas nove irmãs islenhas do Arquipélago (2009: 60 a 68), da descrição, por etapas sucessivas, do terramoto que arrasou Vila Franca do Campo (2009: 77 a 80), do elenco de alguns eventos telúricos açorianos ocorridos em Oitocentos (2009: 82 a 85) e da génese da devoção ao Senhor Santo Cristo dos Milagres (2009: 81).
Esta busca quase enciclopédica do saber surge evidenciada pelo culto do pormenor, atestando a profundidade da pesquisa e/ou a amplitude da investigação, traduzidas tanto pela diversidade genológica (lendas - Lenda dos Cavaleiros das Esporas Douradas e Lenda de Frei João Hortelão -, “faits divers” - ‘casos’ domésticos -, crónicas - sobre o rato de Cabrera, o lince-ibérico, o lobo-marinho, a truta-marisca e outras espécies em vias de extinção - e poemas - “Da Europa ao Oriente-do-Meio”) como pela variedade de tons (lírico, irónico e jornalístico, entre outros) que repassam a obra em apreço.
 Aprende-se, nesta sequência, que o Renault 4CV foi produzido entre 1946 e 1961 (2009: 42), que o total de casais reprodutores de cagarros (e não de charros...) aponta para mais de noventa e cinco mil (2009: 101-102), que o processo de transformação do chá engloba sete fases - emurchamento, enrolamento, fermentação, secagem, escolha, armazenagem e embalagem - (2009: 107-108), que o Festival da Eurovisão, ao qual o povo lusitano rendia preito (ainda lho renderá hoje?), teve início em 1956, que o último modelo da Toyota adquirido por JC em Macau - Cellica A40 Liftback ST de 2 litros - nunca aparecera em Portugal (2009: 126) e que o protagonista-alterónimo, vindo de Bragança, passou a residir, na Lomba da Maia, num T2 + 2 com um sótão, onde o senhorio construiu dois quartos para João e um pequeno escritório para seu pai JC, onde cabem duas secretárias, duas estantes, os PC e os arquivadores (2009: 72).   
Este prazer do detalhe gostoso apresta-se a desaguar na avaliação estatística, domínio no qual JC é exímio: assim é que, na Lomba da Maia, o clima parece ser, embora não seja, mais húmido e mais fresco do que em Ponta Delgada, com temperaturas variando entre 21º C e 25º C (2009: 72); por sua vez, e no ano da graça de 2005, duas botijas de gás custavam 22 euros (preço inferior ao praticado no Continente), a empregada ou auxiliar doméstica (servente ou sopeira de outrora) auferia 25 euros por 8 horas de trabalho, montante este que recebia o jardineiro por se ocupar da horta e do jardim; para mais não referir, e no que respeita ao mesmo ano, tomava-se, em muitas casas, um único banho por semana, havia tão-somente dois canais televisivos - RTP-1 e RTP Açores - e, num universo de aproximadamente 250 000 lares, apenas 32 000 se encontravam ligados à TV Cabo (2009: 86).
Mas onde a vertente economicista do economista JC deflagra de modo mais flagrante é, sem sombra de dúvida, na apresentação de projetos concretos visando, no futuro, o desenvolvimento dos Açores: a diversificação de queijos de qualidade, a exportação de produtos agrícolas, a criação do turismo marítimo subaquático, o incremento de passeios de barco ao largo das costas e a internacionalização dos cortejos etnográficos e do folclore português (2009: 498-499).  
Comentador da sociedade em evolução debruça-se sobre o desajustamento das crianças mimadas e sobre a depressão dos jovens hodiernos e queda-se na ‘transferência’ ou ‘transposição’ da silhueta maternal para a mulher que reputa capaz de colmatar as suas carências afetivas), jornalista (iniciando esta longa carreira com a reportagem, seguida de muitas outras, do “Circuito Internacional de Vila Real” e da “Fórmula 3”) e cultor da etnologia [basta reler as sumarentas páginas sobre a Bragança da sua adolescência - Vimioso e Alfandega da Fé, em particular -, revisitar os deliciosos episódios passados na sua mátria Austrália - “país onde viveria o resto da sua vida” (2009: 347) - e seguir a explicação exaustiva sobre a bem curiosa cerimónia balinesa da cremação], JC é, igualmente, um perito em tradutologia (quem se não lembra da tradução, para inglês, de O pastor das casas mortas de Daniel de Sá?) e um romancista nato, ao qual não é alheia essa operação de espírito, sinónima de disfarce, que é o humor.
Não parece despiciendo, a este propósito, apresentar alguns exemplos, poucos que sejam... Aquando da visita aos Açores de sua filha mais velha, marido e neta, ouviram-se, uma certa noite, alguns “gritos porque um grilo estava no quarto deles e não deixava a miúda e a mãe dormir... Ia sendo uma verdadeira tragédia, pois, como sabem, aqui nos Açores, os grilos cantantes são descendentes dos dinossauros... Se, por acaso, uma barata entra em casa (não podem ter as janelas fechadas todo o dia) nem queiram saber a tragédia familiar que se coloca.” (2009: 74). Por seu turno, e no tocante aos sismos de 2006, reportados em jornal íntimo e sísmico, comenta JC que “O aeroporto fica na metade ocidental da ilha. Como o Audi A4 não nada nem voa, não terão hipóteses de sair...” (2009: 80).

*Continua

Chrys Chrystello*

*Jornalista, Membro Honorário Vitalício nº 297713

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