Diário dos Açores

De regresso ao Pico dez anos depois (Conclusão)

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As profundas transformações que fui encontrar, ao fim de dez anos, no Pico, tanto na vinha como nos vinhos, levaram-me a descrever tudo o que vi com muito entusiasmo e satisfação. Um dos aspetos que mais me impressionou foi, sem dúvida, a recuperação de currais abandonados, que no Douro recebem o sugestivo nome de “mortórios”, por a vinha ter sido morta pela filoxera, como no Pico. Dos poucos mais de 250 hectares de vinha europeia que havia há 10 anos, passou-se quase para 1000 ha, graças ao programa Vitis, que subsidiou grande parte dos custos. Foi uma revolução, fruto da qualidade dos vinhos já então produzidos, que convenceram vários investidores do potencial vitivinícola da ilha, não só para vinhos licorosos, mas sobretudo para vinhos de mesa. Foi uma grande vitória que transformou a produção de vinho na segunda maior riqueza agrícola da ilha, logo depois da pecuária. Porém, não nos podemos esquecer que ainda existem cerca de quatro mil hectares de “mortórios”, que a mata atlântica esconde dos nossos olhos. Depois do que vi na primeira manhã de visitas acalentei a esperança de que muitos desses “mortórios” viriam a ser resgatados ao anonimato e à mata de faias, incenso e urze. Porém, no dia seguinte já tinha mudado de opinião, por vários indícios que descreverei a seguir.
Outro indicador que me surpreendeu pela positiva foi a gente nova, produtores e enólogos, que se dedicam entusiasticamente à vinha e ao vinho. O facto de ter conhecido vários jovens enólogos com excelente formação técnica, que ao fim de algum tempo decidiram transformar-se em pequenos empresários, foi uma agradabilíssima surpresa.
Também não posso deixar de me regozijar com a estratégia comercial que tem sido adotada pelos produtores, que conseguiram assegurar preços dignos para os seus vinhos. Pelos dados a que tive acesso, o vinho DOP mais barato da ilha é de 10 € a garrafa (PVP), estando a maioria dos vinhos normais entre 15 e 30 € a garrafa e os mais caros acima dos 200 € . Não é preciso fazer grandes contas para concluir que com estes preços, o Pico tem o preço médio mais alto, de longe, de todas as denominações de origem portuguesas. Se tivermos em conta que a produção média anual rondará as duzentas mil garrafas e se admitirmos um preço médio de 20€/garrafa, estaremos a falar num volume de vendas a rondar os 4 milhões de euros. Poderá haver muita gente que ache o vinho caro, mas eu acho que apenas custa bastante dinheiro. Se tivermos em conta os encargos dos produtores e as colheitas calamitosas que tem havido até teremos de concluir que o vinho é barato.
Em contraste com os indicadores muito positivos que encontrei, também constatei alguns preocupantes, que poderão ter consequências futuras devastadoras.
O primeiro é uma praga, protegida por lei, que existe na ilha e devasta grande parte das uvas produzidas. Essa praga chama-se pombos torcazes, rolas turcas, melros e, ao que parece, pombos da rocha. Não são espécies cinegéticas e, por isso, não podem ser caçadas, sendo impossível controlar as populações. Segundo o testemunho de vários viticultores, as rolas turcas são um exemplo paradigmático. Como não são aves de arribação, a sua presença na ilha, em grandes bandos, só poderá ser explicada pelo descuido de alguém que as tinha em cativeiro e as deixou fugir (ou as libertou). Adaptaram-se perfeitamente e multiplicaram-se vertiginosamente, transformando-se numa praga devastadora da viticultura e, segundo alguns testemunhos, da pecuária, pois chegam a comer a toda ração das vacas antes destas chegarem às manjedouras. Os pombos torcazes e os melros não são menos devastadores. Tive oportunidade de falar com vários produtores que me disseram que chegam a ter vários hectares de vinha sem um cacho. A princípio custou-me a crer, mas todos diziam o mesmo. Já começaram a ser utilizados paliativos para afastar os pássaros das vinhas, desde aves de rapina artificiais, a gravações do canto das aves de rapina, plantações de cereais para desviar os pássaros, compra de falcões, etc., mas sem resultados eficazes. É, portanto, uma ameaça para o futuro da viticultura, que exige medidas consentâneas com a sua gravidade. Várias existem. Umas técnicas, incomportáveis para a bolsa dos viticultores, outras dependentes da alteração da legislação. Compete, portanto, a quem de direito decidir se as pombas turcas, melros e outros pássaros podem continuar a multiplicar-se alegremente, sendo a fatura paga, em exclusivo, pelos agricultores.
O segundo indício preocupante é a dramática carência de mão-de-obra. São várias as causas, das quais realço duas: 1) trabalhar nas vinhas do Pico é quase um ato de heroísmo, em que tudo é feito à mão, sob chuva frequente e em condições só possíveis de imaginar depois de andar a passear nos currais e 2) há procura de trabalho mais atraente na ilha, como o turismo e a construção civil. Segundo informações que me transmitiram, já há vinhas modernas, financiadas por fundos europeus, a serem abandonadas, por falta de mão-de-obra. O problema não é, contudo, específico do Pico. O Continente está em situação análoga e a solução resume-se ao recurso a emigrantes, mais decisivos no Pico, por a mecanização ser praticamente impossível. É certo que tem havido alguns problemas com emigrantes, que enchem as páginas dos jornais, mas se a solução é essa só há que criar as condições para que sejam tratados exatamente como os portugueses.
Outro problema que não pode ser ignorado são as alterações climáticas e a constatação, cada vez mais evidente, de que os Açores estão mais próximos da rota dos furacões. As últimas colheitas têm sido um indicador preocupante, pois as quebras de produção, devido a acidentes climáticos (e aos pássaros), falam por si.
Contra todas as adversidades com que os produtores se defrontam e com as ameaças que pairam no ar, não basta ter grandes vinhos reconhecidos internacionalmente.
Dei-me conta de que existem outros problemas, mas não acho adequado enuncia-los sem os referidos estarem resolvidos ou em vias de resolução, pois elencar muitas dificuldades costuma ser uma estratégia para quem não quer resolver nenhuma.
Não quero terminar sem uma palavra de esperança no futuro, pois num momento em que há gente da maior qualidade a trabalhar no setor e vinhos excelentes que já são os mais caros do País, é impensável imaginar que não serão resolvidos os problemas com resolução. Já basta as ameaças climáticas para as quais pouco ou nada podemos fazer.

 Virgílio Loureiro *

*Virgílio Loureiro é considerado como um dos mais prolíficos académicos, investigadores, enólogos e comunicadores do vinho,com uma prestigiada carreira como docente do Instituto Superior de Agronomia no domínio da Microbiologia.

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