Diário dos Açores

Mercenários estão de volta!

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Estava lendo, num dia da semana passada, os jornais de Lisboa e cheguei ao local em que se relatava o caso do avião misteriosamente caído num voo de Moscovo para São Petersburgo. Quando percebi quem eram os passageiros, virei a página, invocando o velho princípio de não gastar cera com tão ruim defunto!
O chamado Grupo Wagner, pelos vistos agora violentamente privado do seu comandante, é um bando de mercenários, contratado pelo governo da Rússia para operações de guerra suja, em várias partes do Mundo. São-lhes imputados numerosos crimes de guerra e até crimes contra a Humanidade, tal como alíás aos seus mandantes, o primeiro dos quais, o ditador russo, tem mesmo já um mandato internacional de prisão ás costas e daí que nem se atreva a sair do país, não vá parar com os ossos a uma qualquer cadeia e depois sentar-se no bando dos réus do Tribunal Penal Internacional, para responder pelos crimes que tem ordenado sejam cometidos ao longo da invasão da Ucrânia.
Há alguns anos atrás a questão da existência dos mercenários era tida como excepcional, quando não mesmo negada pelas autoridades dos países que deles se serviam. E nas discussões sobre a matéria sempre se invocava o princípio que a guerra, e as operações militares que a concretizam, deve caber exclusivamente às Forças Armadas regulares dos países envolvidos em confronto, as quais estão sujeitas a regras duras sobre a protecção das populações civis, o uso das armas e o tratamento dos prisioneiros, consagradas nas Convenções de Genebra, núcleo do chamado Direito Humanitário Internacional. De resto o recurso à guerra só é de considerar em caso de legítima defesa contra qualquer agressão, segundo dispõe a Carta da Organização das Nações Unidas, que na prática a proíbe, limitando o recurso ao uso da força à decisão do Conselho de Segurança da Organização, infelizmente paralisado desde há muito pelo veto das cinco grandes potências, algumas das quais já deixaram de o ser, sem daí se tirarem as devidas consequências.
Acontece, porém, que o recurso a tropas mercenárias tem vindo a alastrar, consolidando-se uma verdadeira privatização da guerra. Há mesmo empresas estabelecidas com pessoal especializado em operações militares, a maior parte das vezes antigos soldados que apreciam andar de camuflado e ser envolvidos em torturas e morticínios. Enfim, há gente para tudo... Para justificar o recurso aos mercenários é usual invocar que agora não há apenas estados em conflito aberto, mas também grupos terroristas, que não se consideram vinculados pelo Direito da Guerra e por isso também não se deve invocar o mesmo em seu favor. Daí as operações especiais, as prisões sem termo, as execuções sem julgamento, que se tornaram prática corrente e chocam com qualquer mentalidade bem formada.
Ao mesmo tempo foi-se ampliando o recurso aos drones, que têm a vantagem de não serem tripulados e por isso quando explodem ou são abatidos não implicam a perda de vidas da parte das Forças Armadas dos países que os utilizam. Já o mesmo não se pode dizer da outra parte envolvida no conflito, na qual os drones costumam fazer grandes matanças, actuando com precisão e eficácia. O elevado custo dessas novas máquinas de guerra é considerado despiciendo perante as vantagens que se lhe atribuem. Em todo o caso, já têm sido relevados os custos psicológicos de matar gente à distância, sem presença directa no campo de operações, respeitando horários de entrada e saída do serviço, para voltar para casa e dormir descansado, como se de um mero trabalho burocrático se tratasse. Há até já filmes sobre isso!
Estamos portanto perante uma verdadeira mudança de paradigma. Das Forças Armadas nacionais, recrutadas entre os cidadãos, no cumprimento de um dever cívico e patriótico, estamos voltando ao conceito de profissionais da guerra, disponíveis para operarem em favor de quem lhes puder pagar. É certo que o fim do Serviço Militar Obrigatório, corrente hoje em dia na maior parte dos países mais avançados, a partir da grande contestação à mobilização forçada, que teve lugar nas universidades americanas na fase final da Guerra do Vietnam, já conduziu à profissionalização das Forças Armadas, como acontece entre nós. Quem enverga a farda já fez antes uma escolha e está por isso disponível para o que lhe for ordenado, mesmo que tal implique ir combater longe de casa e em guerras alheias à imediata defesa do território nacional, fruto de compromissos internacionais do próprio País, assumidos pelos seus legítimos governantes.
Com a baixa da natalidade e o envelhecimento da população tem vindo a verificar-se uma acentuada quebra das ditas “vocações militares”. E por isso até mesmo em Portugal se começa a falar de abrir as fileiras a estrangeiros residentes entre nós. A fase seguinte será talvez admitir o recurso a mercenários, em caso de necessidade, esperando que tal não se verifique...
No entanto, a existência de tropas mercenárias era comum em tempos idos. E nos “Batalhões de El-Rei” alinhavam também estrangeiros, levados a tal por diversas razões. Terá sido talvez a Revolução Francesa a popularizar o conceito de “Nação em Armas”, revigorando o carácter nacional do serviço militar.
Corre agora que o ditador russo se prepara para exigir um juramento de fidelidade aos sobreviventes do Grupo Wagner, para que se mantenham ao serviço dos objectivos militares por ele e sua “entourage” definidos, de imediato para voltarem à Ucrânia e às criminosas destruições que por lá se praticam. Lembra isso tragicamente o juramento de fidelidade ao “Fuhrer” exigido por Hitler às tropas alemãs já na fase final da II Guerra Mundial, tudo terminando num banho de sangue e num mar de destroços.

João Bosco Mota Amaral*
* (Por convicção pessoal, o Autor não respeita o assim chamado Acordo Ortográfico)    

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