Diário dos Açores

Natália, uma ilha dentro da ilha

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Opinião

As comemorações do centenário do nascimento de Natália Correia - 13 de setembro de 1923- já começaram  a ser assinaladas nos Açores em Lisboa, em Paris  e noutras cidades a que ficou ligada, quer pelas referencias que existem na sua obra, quer  por amigos e admiradores oriundos desses locais. Ao aproximarmo-nos de Natália e da sua circunstância, recorde - se que o pai e mãe entraram em rutura quando Natália tinha alguns meses. O pai emigrou para o Brasil. A mãe, desde sempre, preocupou - se com a educação das filhas. Despertou-lhes o sentimento da música, a importância da história grega e romana, o simbolismo das fábulas, a decifração das figuras mitológicas em face da realidade concreta. Também lhes incutiu os valores da democracia e a aproximação com a modernidade. Tudo isto que assimilou na infância projetou – se até ao fim da vida.
Maria José Oliveira é republicana e tem relações pessoais e literárias com figuras da oposição. Radicou-se, em 1934, definitivamente, em Lisboa. Quis dar às filhas – as oportunidades que não existiam em São Miguel. Maria José Oliveira radicou-se, em 1934, com as filhas, definitivamente, em Lisboa. A Constituição Politica e Administrativa de 1933 definiu os alicerces do regime. Mas 1934 prossegue a consolidação da ditadura. O golpe militar, de 28 de Maio de 1926, encerrou o parlamento, extinguiu os partidos e os sindicatos, estabeleceu a censura - prévia a imprensa pôs fim ao estatuto democrático implantado com a República. A criação de uma polícia política que ficará tristemente célebre, com o nome de PIDE vai ser um dos sustentáculos. As estruturas penais da Alemanha de Hitler vão inspirar a legislação portuguesa e a sua concretização. A Itália fascista de Mussolini também constituirá um modelo para as organizações de trabalhadores e de jovens. Políticos, militares e intelectuais buscam asilo em Espanha e na França. A repressão destrói vários movimentos revolucionários. Sucedem – se as deportações para os Açores e para as colónias.
0 Diário de Noticias de 1 de Janeiro de 1934 inseria na primeira pagina um poema de Silva Tavares - um dos poetas aclamados por Salazar e os apoiantes do regime - tal como Mário Beirão, Antonio Correia de Oliveira - com o título Juízo do Ano refere: «Entre nós vamos ter um ano em cheio, / mercê da produtiva Agricultura. / A fava, o trigo, a pêra e o centeio / vão causar impressão pela fartura!.../ mas a maior de toda a produção, /a que já se anuncia de maneira/ a fazer a riqueza da Nação/ vai ser a produção da oliveira!/ Teremos tanto azeite, ao que se crê/ que até serão vulgares os desleixos/ d’untar com ele rodas e engrenagens./ Ora tão azeitados, já se vê: / -é fácil de prever quantas vantagens/ nós temos, de que tudo entre nos eixos». Era uma alusão direta a Oliveira Salazar que, ocupava diversas pastas ministeriais desde 1928 e, a partir de 1932, assumira a chefia do Governo se prolongara até Setembro de 1968, numa das mais longas ditaduras do século XX.
A mãe de Natália, em Lisboa, travou relações pessoais e literárias com figuras da oposição. Natália conviveu, desde sempre, com estas personalidades e através delas relacionou – se com muitas outras. De todos os amigos da mãe houve um que exerceu a maior influência na formação intelectual de Natália: Manuel Cardoso Martha ( 1882-1958). Natália passou pelo Liceu de Ponta Delgada; frequentou em Lisboa, o Liceu Filipa de Lencastre, mas sem qualquer aproveitamento. Mostrou – se refrataria aos métodos de ensino. A passagem pelos liceus foi, segundo as suas palavras, de «ave migratória». Deve a formação intelectual ao que aprendeu com a mãe e às lições recebidas por Cardoso Martha. Natural da Figueira da Foz, lecionava em Lisboa, na Escola Fonseca Benevides. Antigo seminarista, com pleno domínio das humanidades clássicas, da literatura portuguesa e das várias literaturas europeias. Era um erudito, um bibliógrafo, um bibliófilo, um colecionador de manuscritos e de livros  que obteve de muitos modos, sem excluir apropriações ilícitas, em livrarias, em alfarrabistas e até em casas de amigos que visitava e lhe davam almoço ou jantar a troco de pilhérias que  recitava à sobremesa.
Residiu os últimos anos em casa de Natália Correia. A biblioteca e o acervo documental de Martha ficaram incorporados, na biblioteca de Natália. Mesmo com extravios, o espólio de Natália, possuía livros muito raros e obras de arte muito valiosas. Rodearam Natália durante décadas. Martha organizou o In Memoriam de Eça de Queiroz, foi um dos diretores e redatores da revista Feira da Ladra (1929) e também da «Nova Gazeta de Lisboa» (1935). Buscava «Coisas Novas em Papeis Velhos». Sabia extrair o pitoresco e o insólito. Fascinava os que o liam e ouviam Sabia extrair o pitoresco e o insólito. Fascinava os que o liam e ouviam. A biblioteca reunia as maiores preciosidades clássicas e contemporâneas. Logo a seguir à morte de Cardoso Marta, o então Presidente e vereadores da Câmara da Figueira da Foz, fizeram diligências para que todo esse acervo literário e artístico ficasse depositado no Museu Santos Rocha, na altura, a cargo de Vitor Guerra. Consultados os advogados seus amigos e do marido Alfredo Machado, Natália terá entregue relatos - em Severo Biscaia - o que existia sobre a Figueira da Foz e arredores.
A vida, para Natália exigia afirmação pessoal e cívica, a luta contra a rotina e o marasmo, a coragem da rebeldia e do inconformismo. A sua poesia impõe – se pela riqueza metafórica, o jogo dos paradoxos, o luxo ornamental, a exuberância do barroco e a interpelação simbólica. Uma Natália ávida de todas as experiências visíveis e invisíveis, em partilha contínua do profano com o sagrado. É, sem dúvida, uma das grandes figuras literárias da segunda metade do século XX. Pertenceu ao reduzido número de mulheres que basta só dizer um nome para as identificar na amplitude da sua criação literária e artística e na singularidade da sua dimensão humana: Natália, Sophia, Vieira (da Silva), Agustina, Amália.
Natália ganhou notoriedade nos anos 40. Conciliou o jornalismo, a literatura e a política. Aderiu à oposição democrática; teve programas no Rádio Clube Português, escreveu em jornais e revistas. Assinou, em 1945, as listas do MUD. Todavia, ao contrário da maioria dos  jovens  intelectuais e políticos da sua geração – caso Mário Soares, Salgado Zenha – não ingressou no MUD Juvenil, dominado pelo Partido Comunista. Os primórdios literários de Natália Correia refletem aspetos genéricos do neorrealismo. O romance Anoiteceu no Bairro e o livro de versos Rio de Nuvens são dois exemplos. Demarcou-se, todavia, deste movimento literário e político, nos anos 50. Seguiu outro caminho com variantes óbvias. Passou a ficar próxima do surrealismo.
Se a identificação de Natália com Lisboa foi muito intensa, a ligação com os Açores foi igualmente profunda. Num dos seus livros mais emblemáticos, Não Percas a Rosa sucedem-se as  recordações da infância e da adolescência associadas a memórias gustativas, olfativas e visuais como, por exemplo, o cozido das Furnas com  inhames e maçarocas de milho. Desce mesmo ao pormenor: «cozidas na terra fervente e mole à beira da Lagoa e que depois comemos numa mesa de pedra sob as plumas dos fetos; por entre colinas de pedra pomes, líquenes, musgos, mantos verdes que pendem dos ribanceiros onde se abrem as alas rosadas e azuis das hortênsias».
A infância e a adolescência em São Miguel emergem no «Retrato talvez da menina insular» com significativa evidencia: «Tinha o tamanho da praia /o corpo era de areia.  /E ele próprio era o início /do mar que o continuava. /Destino de água salgada /principiado na veia. /E quando as mãos se estenderam/a todo o seu comprimento/e quando os olhos desceram /a toda a sua fundura /teve o sinal que anuncia/ o sonho da criatura. / largou  o sonho nos barcos /que dos seus dedos partiam /que dos seus dedos paisagens /países antecediam./E quando o seu corpo se ergueu/ Voltado para o desengano/ só ficou tranquilidade /na linha daquele além. /Guardada na claridade /do olhar que a retém».
Na linhagem das Cantigas de Escárnio e Maldizer, Natália concebeu as Cantigas de Risadilha. Deram brado os versos que proclamou para arrasar o deputado do CDS, João Morgado, ao pronunciar - se, na Assembleia da República, acerca da legislação sobre o aborto. Não poupou amigos como Mário Soares e o Partido Socialista: «Já não sei se é país se é orfanato/pois nem vela, nem reza, nem sabá/impede que em berreiro ou desacato/ ande tudo à procura do Papá». (…) «Tinha o PS pai. Mas o Marocas/ mandou alguns filhotes para o galheiro/ e do partido por trocas e baldrocas,/já não consegue ser o pai inteiro». (….) «nesta lusa farronca sem vintém, /neste muda que muda sem mudança,/venha o que venha, há-de lixar-se quem/ do salsifré tiver a governança».
Em termos desdenhosos alvejou Freitas do Amaral: «muito a preceito dos cristãos fervores/ do CDS, o Lucas é o retrato/ De um Menino Jesus entre os doutores/ A meter mestre Freitas num sapato». Devido ao mergulho no Tejo e outras peripécias não escapou Marcelo Rebelo de Sousa, o autor da frase «picareta falante», que passou também para o classificar a sua incontinência verbal: «o Marcelo neste mapa/ a brincar aos cowboys não há nenhum./ passa rasteira: o mais subtil derrapa;/ dá ao gatilho da intriga e faz: pum-pum.» Sempre que podia dissecava  o poder político e social. Zurziu as prosápias de fidalguia; os vícios e as vilezas dos novos e novíssimos ricos, os intelectuais e artistas enfatuados, os políticos arrivistas e corruptos. Execrava, ruidosamente, a ignorância e o fanatismo. 

Ficou sempre agarrada aos Açores. Nasceu, viveu e morreu açoreana. Se a identificação de Natália Correia com Lisboa foi muito intensa, o vínculo com os Açores era inapagável. Um dos seus muitos poemas repletos de açorianidade resume – se nestes versos tão simples e tão profundos: «Para Lisboa me trouxeram/ não de uma vez e embarcada:/ minha longa matéria foi/ pouco a pouco transportada. / Recém-vinda de ficada /em morosa maravilha, / sempre a chegar a Lisboa/ e sempre a ficar na ilha».
Lisboa era a sua cidade adotiva. Juntamente com o marido e a escultora Isabel Meyrelles criou, em 1971, uma sociedade para instalar um bar, restaurante / café-concerto, no largo da Graça, no rés-do-chão da Vila Souza, um edifício histórico do bairro. Ficou a chamar-se o Botequim. Evocava a tradição literária, política e boémia, dos primeiros cafés de Lisboa, do século XVIII, do tempo de Bocage e outras figuras que tomaram parte nos preparativos da Revolução Liberal, de 1820, e da Independência do Brasil.
Em torno de Natália, o Botequim concentrou todas as noites, poetas, escritores e artistas das mais variadas tendências. Políticos de todos os quadrantes. Deputados, ministros (alguns futuros presidentes da República). Diplomatas portugueses e estrangeiros. Espiões nacionais e internacionais para se inteirarem dos bastidores do processo revolucionário e contra revolucionário. E, ainda, representantes da FLAD, o movimento da independência dos Açores. Durante mais de 20 anos a irradiação magnética de Natália proporcionou essa atmosfera irrepetível que Fernando Dacosta recriou no livro O Botequim da Liberdade (2013). Outra citação obrigatória é a Fotobiografia de Natália Correia ( 2006 ) da autoria de Ana Paula Costa. Recentemente saiu a biografia romanceada de Filipa Martins, com o titulo O Dever de Deslumbrar.
Na introdução do catálogo da exposição, inaugurada em Paris, o curador Rui Pereira deteve – se nas memórias da infância e adolescência que marcaram Natália Correia: o facto de ter vivido  com um pai ausente; ao assumir que «a presença materna junto de si foi basilar na construção da sua consciência no Feminino». (…) «Viver o espanto permanente em contiguidade com a imensidão do mar foram determinantes na formação da sua personalidade. «Natália» - afirma ainda Rui Pereira -observava demoradamente as eternas sucessões de marés, as imprevisíveis variações de “humor”, os cenários enraivecidos das “marés-vivas» onde tudo pode abater e afundar ou, em contraponto, o “mar-chão” a espraiar suavemente pela costa». «São visões do Mar-Matria uterino, - conclui - que banha os continentes, apela à bravura dos navegantes que se deparam contra os “ventos e marés. Natália ao assimilar as mais fantasmagóricas “histórias” do mar delas retirou ilações que marcaram o seu percurso de vida» – acentua noutro passo -,«ao navegar contra ventos e marés, em luta permanente para vencer medos ancestrais».
Natália adquiriu uma dimensão ilimitada para lá do oceano, ao romper impetuosamente as restrições de uma sociedade arcaica e patriarcal. Rejeita todas as formas de poder e de autoritarismo. A vida para ser vivida reclamava coragem pessoal e cívica e uma afirmação consciente de rebeldia e de inconformismo. É uma ilha dentro da sua própria ilha. Sempre ávida de todas as experiências visíveis e invisíveis, em partilha contínua do profano com o sagrado. «As coisas têm todas vida própria. É tudo uma questão de lhes acordar a alma». Estas palavras de Melquíades visitador de Macondo e vendedor de prodígios, nos Cem Anos de Solidão de Gabriel Garcia Marques explicam as opções de Natália, no deslumbramento do olhar nas interpelações em torno do passado, do presente e do futuro, e na fidelidade ás raízes da memória. Articulam – se com os quatro elementos primordiais da natureza – o ar, a água, o fogo e a terra. Constituímos vínculos de proximidade e distancia, de leitura explícita e de alusão oculta, a situações de confronto e dialogo, entre o sagrado e o profano, a alegoria e o símbolo. Circunscrevem-se, quantas e quantas vezes, na obra e na presença física de Natália ao território de São Miguel, desde a ponta da Ferraria até à Povoação, recortada na ondulação das suas lombas; desde o areal dos Mosteiros até às rochas a pique do Nordeste. Era o seu universo para as viagens possíveis e impossíveis, através de todos os cais da Ilha abertos para o mundo.

António Valdemar*

*Jornalista, carteira profissional número UM; sócio efetivo 
da Academia das Ciências

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