Diário dos Açores

Três personalidades de exceção

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Opinião

Sempre gostei de ler biografias e autobiografias de personalidades excecionais. Ao longo da vida li várias e uma que me ficou na memória para sempre foi A Mocidade de Herculano - Até à Volta do Exílio (1810-1832), de Vitorino Nemésio, a sua tese de doutoramento. Muito aprendi com a sua leitura; não apenas sobre a vida de Alexandre Herculano, mas sobre o século XIX, em especial sobre a nossa Revolução Liberal. Descobri, também, neste livro, que os escritores de ficção trazem uma qualidade suplementar às biografias que escrevem.
Foi o gosto por este género literário que me levou, durante o verão deste ano, à leitura de Uma Longa Viagem com Maria Filomena Mónica (Lisboa: Contraponto, 2023), da autoria de João Céu e Silva; Diante de Ti. Os meus Caminhos (Prior Velho: Paulinas Editores, 2018), de Tomáš Halík, e O Dever de Deslumbrar. Biografia de Natália Correia (Lisboa: Contraponto, 2023), de Filipa Martins. Todas as vezes que levei biografias para ler em férias não me arrependi e, desta vez, aconteceu o mesmo: valeu a pena o tempo gasto.
O primeiro livro, Uma Longa Viagem com Maria Filomena Mónica, não é tecnicamente uma biografia, mas mais uma longa entrevista de vida dada por alguém absolutamente excecional. O seu autor, João Céu e Silva, jornalista e escritor, tem uma larga experiência neste tipo de livro, pois que este é o sexto volume de uma série que conta com outros autores, por exemplo, Saramago, A. Lobo Antunes e Torga.
As matérias, se assim se pode dizer, estão organizadas por capítulos cujos títulos apontam para uma ideia base, devidamente enquadrada por uma introdução que dá entrada à conversa. Por vezes, dentro dos capítulos, o autor vai pontuando a entrevista com comentários, explicações ou informações. Ao longo do livro, a entrevistada e a sua obra surgem-nos na sua inteireza. Aparece-nos Maria Filomena Mónica na sua coragem, na sua franqueza, na sua imensa cultura, no seu conhecimento profundo sobre o Portugal dos séculos XIX e XX, concretamente a sociedade portuguesa de antes da Revolução dos Cravos, o 25 de Abril e a vertigem dos meses seguintes, a estabilização do regime e o trajeto do país até à atualidade. A conversa a propósito das biografias que a autora escreveu, género pelo qual tem particular predileção, é interessantíssima. O livro permite-nos aprender imenso sobre Portugal e os portugueses. A entrevistada mostra-nos que temos virtudes e defeitos, grandezas e misérias, vantagens e desvantagens que, para nosso bem e projeção no futuro, convém ter em conta.
Diante de Ti. Os meus Caminhos traz-nos outro mundo. É uma autobiografia de Tomáš Halík, conhecido teólogo checo, nascido na antiga Checoslováquia em 1948, ano em que o partido comunista do país tomou o poder. Viveu a infância sob um regime estalinista, converteu-se ao cristianismo, estudou sociologia e filosofia em Praga e Oxford, foi proibido de ensinar, trabalhou como psicoterapeuta de toxicodependentes e alcoólicos, o que lhe deu uma experiência de vida rica. Estudou teologia na clandestinidade e foi ordenado padre secretamente. Viveu a Primavera de Praga e o seu esmagamento pelas tropas do pacto de Varsóvia. Em 1989, na Revolução de Veludo, foi um dos conselheiros do Presidente Václav Havel. Hoje Tomáš Halíké muito conhecido como teólogo, com um pensamento muito próximo do Papa Francisco. A sua teologia aponta para um catolicismo que, assumindo a contemporaneidade e aberto à participação de todos, é portador de uma mensagem libertadora sempre em constante desenvolvimento.
O livro não interessa apenas a quem é crente, pois retrata com grande fidelidade o funcionamento dos regimes comunistas do Leste da Europa. As páginas de Halík sobre o regime comunista da Checoslováquia trouxeram-me à memória recordações da minha estadia de 15 dias como professor visitante na universidade de Cluj-Napoca, na Roménia, ao abrigo do programa Tempus da Comunidade Europeia. Foi em maio de 1993, a ditadura de Nicolae Ceausescu tinha caído no fim de 1989. Fiquei surpreendido com o que encontrei, apesar de tudo quanto tinha lido e ouvido sobre a vida nos países de leste. Não foi apenas o que vi que me espantou, mas também as histórias (não digo “estórias”) que ouvi sobre a falta de bens de consumo, a falta de liberdade, a corrupção em grande escala e a desconfiança presente nas relações sociais. Um colega dizia-me que ir a uma praia do Mar Negro era uma experiência inacreditável pelo silêncio a que as pessoas se remetiam devido à desconfiança que pautava a convivência; nunca se sabia se havia um bufo por perto. A quem se sente atraído pelo paraíso prometido pelos regimes comunistas esta autobiografia é um aviso.
O terceiro livro, O Dever de Deslumbrar. Biografia de Natália Correia, é uma biografia segundo o modelo consagrado, fruto de uma investigação de cinco anos. A sua autora também é romancista, o que, em meu entender, contribui para a qualidade da obra, e não apenas sob o ponto de vista literário.
A vida de Natália Correia é contada e devidamente contextualizada na sua época, de modo a que o leitor fique a par de como o tempo marcou a vida da escritora mas também como a escritora marcou o seu tempo. Ao longo da obra – são quase 700 páginas – acompanhamos o percurso individual da poetisa, termo preferido por Natália, enquadrado no contexto social, cultural e, nomeadamente, político que condicionou a vida da biografada e como esta atuou sobre ele. O livro permite ficarmos com um quadro bastante vasto do regime salazarista, da Revolução do 25 de Abril, do PREC (Processo Revolucionário em Curto), e do que se lhe seguiu até à morte de Natália Correia. 
A leitura da obra permite a quem é mais velho, confrontar-se com uma narrativa sobre muito do que, por certo, viveu e confirmar ou discordar de muitas leituras, quer das de Natália Correia quer das apresentadas pela biógrafa. Aos mais novos, e nestes está mais de metade da população portuguesa, permitirá uma visita à história do país em torno de uma personalidade ímpar da nossa cultura e encontrar, por certo, respostas para perguntas a que até hoje não conseguiu responder: conhecer o passado ilumina muito do presente.
Vi alguns dos programas de televisão que Natália Correia fez, ou em que participou, antes e depois do 25 de Abril, mas não a conheci pessoalmente. Se tivesse surgido essa oportunidade, não creio que se tivesse dado uma aproximação, porque a poetisa sempre me pareceu uma personalidade arrogante, excessiva e com tiques de prima dona a que sou alérgico - o título da biografia, O Dever de Deslumbrar é, deste ponto de vista, significativo. Essas personalidades, sempre ou quase sempre paradoxais e contraditórias, cansam-me, embora compreenda que possam ser fascinantes para muita gente.
Lida a biografia de Natália Correia, contudo, e apesar do que acabo de afirmar, tenho de reconhecer à poetisa o lugar excecional que ocupa no panorama cultural do país e, do ponto de vista político, a sua grandeza como lutadora pela liberdade.
E aqui estão três livros tão diferentes que apresentam três personalidades tão díspares, mas cujas histórias de vida nos alargam os horizontes e nos permitem conhecer caminhos de realização pessoal bem distintos.

José Henrique Silveira de Brito

Braga, outubro de 2023

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