Diário dos Açores

Gilberto Bernardo, Poemas sobre tela

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Opinião

Poemas sobre tela de Gilberto Bernardo, são, que eu saiba, a sua primeira confissão pública. Nos versos anteriormente publicados, tratou de temática diversa, porém nunca como agora desnudou o seu mais íntimo versando sobre si próprio. No prefácio ao álbum dos seus trabalhos artísticos, eu havia-lhe feito um retrato pintado a partir de fora, aliás esboçado a partir das suas aguarelas e esculturas. Recordo uma passagem desse retrato:
Folheio estas páginas ricas de traços, cores, imagens e recordações que me são particularmente próximas e queridas e salta-me à mente, sem cessar enquanto as percorro, o título de um livro de poemas de Armando Côrtes-Rodrigues – Em Louvor da Humildade. Datado de 1924, reúne os poemas de uma fase franciscana do poeta, numa altura em que partilhou com o seu contemporâneo, patrício e amigo Domingos Rebelo uma particular visão do mundo influenciada por S. Francisco de Assis. Se me veio à memória esse livro, o cérebro teve as suas razões que procurarei desvendar nas linhas que seguem.
Também Domingos Rebelo está por todo o lado na arte de Gilberto Bernardo. São as pessoas e os cenários, a gente e a ilha, se bem que meio século após a vida desse exemplar pintor da cultura popular micaelense. Não se trata de imitação, mas de uma partilha de sensibilidades. Gilberto empatiza com o universo simples do espaço insular onde nasceu e cresceu e onde foi moldada a sua visão do mundo. Longe de sentir “alma cativas”, a la Roberto de Mesquita nas Flores, ele deteta ao seu redor “almas simples”, como as do clássico conto de Nunes da Rosa. Não se trata, todavia, de mero olhar ingénuo que muitas das suas pinturas naïf podem à primeira vista sugerir. O que a sua obra projecta é antes uma opção inata pela contemplação da bondade natural dos seres humanos e das coisas, deliberadamente ignorando o outro lado, que o autor bem sabe ser também real. É uma questão da perspectiva que o seu olhar franciscano (sem franciscanismo) mais aprecia.
Como atrás disse, os poemas anteriores de Gilberto não eram sobre ele mas sobre o mundo à sua volta. Em nota introdutória a este livro, ele anuncia a volta para dentro que nestes versos opera. Mas atenção: não foi agora que ele começou a escrever este tipo de poemas embora só agora os reúna em livro. Explica ele na dita nota:
Quando comecei? Não sei, só sei que as palavras sempre estiveram comigo quando delas precisei, sempre me serviram de suporte onde dependurei as alegrias e as mágoas. Durante tempos, as palavras foram, e ainda o são, as companheiras fiéis das melodias que as vozes, - não só as da Terra - mas outras espalharam, um pouco por todo o lado, para semear a alegria.
 Mas as palavras e as cores que lhes dou sempre estiveram presentes em mim, quantas vezes, no meio de tribulações, o choro que vertia eram lágrimas, que nem todas consegui ainda exteriorizar; porém, as palavras, como companheiras dos momentos alegres da vida e a minha tendência para a contemplação, deixam-me extasiado, sentindo que elas gritavam no meu silêncio a vontade de serem conservadas, para que um dia possa recordar a beleza de tais instantes. E foi isso que fiz e faço, com labor e persistência, ao longo de muitos silêncios, na oficina: polindo, conservando e colorindo estes recortes vivos e vividos, para que o seu colorido sugira algo ideal, não só para que eu reviva, mas para que outros os possam saborear no futuro.
Quando digo que estes poemas são sobre o Gilberto e não sobre o mundo à sua volta, não quero significar que o Gilberto aqui entrou em contemplação umbilical. De modo nenhum. É só indiretamente que os poemas são sobre ele, pois frequentemente são sobre a paisagem que o rodeia, o mundo natural que o cerca; todavia é no seu olhar contemplativo desse universo que ele revela o seu mais íntimo. Uma vez mais, há um modesto apagamento do eu, que apenas emerge no modo como contempla a natureza. 
Falei em franciscanismo, sem todavia atribuir ao termo qualquer tonalidade menos positiva. Na sua versão original, a de Francisco de Assis, há uma atitude interior de serena contemplação da natureza, de se deixar embeber pela sua beleza, de se saciar devorando-a com os olhos e gozando a calma íntima por ela proporcionada.
Nestes poemas do Gilberto há vocábulos que surgem em alta frequência. Alguns dos mais constantes são, por exemplo: luz, sol, estrelas, cor, serenidade, doçura, claridade, raios de sol, florir, brilhante, natural, manhã, pintar, florir, olhar, verde, odor, contemplar, primavera. Toda esta poesia está escrita num registo diametralmente oposto ao do florentino Roberto de Mesquita. Longe mim querer significar que por isso uma melhor; apenas que estão em registos opostos. A tradição literária açoriana tem-se revisto na taciturna, dolorida e dolente, melancólica e algo depressiva visão do mundo afetada pela chuva, pelo nevoeiro e pelo cinzento ilhéu inaugurado por Mesquita. No autor de Almas Cativas, apenas uma vez uma manhã de domingo é celebrada. A poesia de Gilberto transcende o peso da geografia, a densidade das nuvens conseguindo sempre descobrir o sol que brilha por trás delas mesmo quando não consegue cortar o manto espesso do cinzento.
Estes poemas de Gilberto Bernardo recuperam o melhor da nossa tradição moldada por uma visão do mundo franciscana que desacentuava o eu, por vezes em excessivo registo de humildade, mas que sabiamente explorava a beleza do mundo e favorecia a contemplação dele, da vida, do espaço dos outros, sempre com serenidade e reconhecimento das limitações humanas que cada um acarreta consigo. A procura de uma felicidade interior que não exclui, mas que de modo nenhum pode realizar-se em pleno nas possessões materiais. Um sentido de dignidade do eu que não implica nenhuma necessidade de afirmação impositiva nem muito menos de auto engrandecimento.
Sim, tudo valores do passado que cada vez mais vão faltando hoje, nestes dias em que no Facebook e Tweeter tanta gente consome horas infinitas a gabar-se, em êxtase consigo próprio, não se apercebendo de que os outros estão mais interessado sem fazer o mesmo – isto é, em falar de si e exibir-se - do que em ouvir e saber de mais ninguém. São diálogos de egos de altifalante empunho, mas surdos. E de cegos face aos outros.
O Gilberto que sempre conheci, que tão serena e humanamente se revelava nas suas aguarelas e nas suas peças de escultura, vem agora aqui revelar, sem alarde nem qualquer ensimesmamento autocontemplativo, que tudo nele afinal lhe brota do íntimo, de um interior pacífico, amante do silêncio, contente consigo mesmo sem ambições nem ressentimentos. E é disso que se enche a sua poesia. O poeta consegue-o sem esforço nem fingimento, como fica mais que claro nesta autobiografia oferecida em poemas.
 

Onésimo Teotónio Almeida

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