Foi há 50 anos a chegada a Timor
Diário dos Açores

Foi há 50 anos a chegada a Timor

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Opinião

Timor esteve sempre envolto em lendas e contarelos que só a distância pode criar. Em Portugal, Timor era um sonho, a calma quietude das mil e uma noites, o Oriente exótico e o sortilégio dos trópicos. Ao chegar, um Europeu podia sentir a desilusão. Sobrevoava a ilha, estéril, povoada por montes e pedras. Vimos a paisagem desoladora, árida e suja. A primeira impressão fora de repulsa, era pior do que tudo o que se pudesse imaginar. Mais atrasado, inculto, selvagem e rude que o mais retrógrado de África. Desolador. Um primitivismo assustador. Consternava. Tecnologicamente virgem acabado de sair do neolítico. Por desbravar, por conquistar, por colonizar. Sem sinais de vida, sem marca de civilização humana. 
Eram quatro ou cinco da manhã e o calor já apertava. Já ia alto o sol. Uma surpresa muda acompanha os esgares dos recém-chegados. Timor é isto, casas esparsas de bambu sob as asas do bimotor. O visitante questiona-se: “Como é possível? Será isto Timor?” O avião desce em círculos concêntricos. Os passageiros - inquietos - procuram em vão o aeroporto internacional que teima em não se mostrar. De súbito, por detrás da colina que ninguém anteviu, numa rotação brusca de 180º, aí está o pequeno “T” da pista. Cenário rústico intersetado por ribeiras secas. 
Altas escarpas abruptamente voltadas ao mar, uma terra devastada desde a sua criação. Ecologicamente virgem. Arribas alcantiladas, a pique sobre um mar de corais brancos. A imponente torre de controlo dos panfletos turísticos não se vislumbra. Existe uma pequena torre, mas não era a que vinha fotografada nas imagens do panfleto turístico que me deram antes de partir. Os edifícios poeirentos em teto de colmo eram a aduana, o bar e o salão de embarque. Este é o aeroporto internacional da Vila Salazar que só existe nos textos de geografia dos liceus portugueses (nos livros coloniais pois é conhecida como Baucau). 
Aqui, as formalidades têm um novo sabor, semelhante ao lento, mas rítmico compasso de espera das pessoas que os antecipavam, como se tivessem séculos de vida para viver. Uma estranha turba se aglomera. Este é o espetáculo sempre indescritível da chegada da “cacatua bote” (a grande catatua) ou “patas de aço”. Uma cerimónia de adoração a um deus estrangeiro descendo dos céus. Assistem à chegada como se fosse o começo de uma nova religião, ou uma manifestação sagrada. As vestes multicores contrastam com os muitos sóis a que os séculos as expuseram. São cinco da matina e quentes, e húmidas. Poeirentas e calorentas.     
Meteram-nos na traseira da velha carrinha Bedford (Série S, uma RL dos anos 50?), com bancos de suma-a-pau e toldo de lona, abrigando do sol os velhos bancos de madeira. Ostentava o pomposo letreiro de Carreira Pública #1 Díli - Baucau. A sinuosa estrada de montanha volve-se para o mar, descendo lentamente do aeródromo. Rumamos à cidade menina, Baucau, escondida entre as folhas dos palmeirais e luxuriantes florestas tropicais. Pela traseira da camioneta vislumbram-se novas imagens, mas não restam dúvidas, era uma terra morta à nascença. 
Cruzamo-nos com homens vestidos de saia (aprenderei que se chama “lipa”), estreitando galos de combate entre os braços nus e o torso, enquanto caminham. Baucau tem algumas casas de pedra. Sobressaem por entre as de terra e adobe. Havia o aspeto exótico da população colorida. Das ruínas do mercado evocam-se templos romanos desconhecidos. Sempre tive esta imagem. Aliás, a imagem que perduraria para sempre na mente era a de Baucau como um templo romano em ruínas. Nunca mais a voltaria a ver. Uma curta paragem para uma sandes e limonada na messe do quartel-general local. Mesmo em frente, uma piscina, subitamente deslocada no tempo e no espaço. De regresso à estrada nº 1, mal se vislumbrava o caminho por entre a densa vegetação. E eram tantos os precipícios sobre a costa alcantilada! A meio da viagem, que parecia durar mais de 400 km, paramos para outra refeição, mais ligeira, no pequeno aquartelamento do Manatuto.
A picada de montanha, por vezes, aproxima-se tanto das ribanceiras e do abismo que os corações entram em animação suspensa por entre ais reprimidos. Ao longo do caminho se transpõem leitos secos de ribeiras que o tempo, a incúria dos homens e os elementos, converteram em estrada de ocasião. O chão de gravilha, pedregoso, a cor indefinida entre o castanho e o verde, as casas de colmo (aprendi que se chamam “palapas”) disfarçadas por entre a vegetação, tudo serve para propiciar uma imagem de pedras e colinas. Estradas herdadas da ocupação colonial nipónica na 2ª Grande Guerra. As baías, primitivas e inconquistas por barcos de qualquer tamanho ou tipo. Praias de conquilhas, caranguejos e destroços das ondas, revelando paraísos insuspeitos. O éden pode ter sido aqui.
É difícil ver os nativos com os seus eternos sorrisos abertos da cor de carmim. Estupefactos, atónitos, espantados. Não é sangue que jorra dos lábios, apenas a masca: uma mistura de cal e areca (harecan em Tétum). Mastigá-la é um placebo psicológico para a comida que não existe. Em janeiro de 1998, recordarei essa imagem ao ouvir na rádio o José Ramos Horta a apelar à solidariedade internacional para debelar a fome que grassa no território. Os sorrisos vermelhos escondem fomes de séculos. Não é de hoje, nem de ontem, nem do tempo português, japonês ou indonésio. É eterna esta fome.
De súbito, após passar e deixar para trás locais e aldeias que só a memória despalavrada pode recordar, eis Díli. Afinal, eram apenas 212 km e sete horas mais tarde, uma viagem fulminantemente rápida. Uma avenida demasiado larga, espalha a poeira pesada por sobre o colmo das palapas vizinhas e poucas casas de cimento e teto de zinco. Ao entrar em Díli, por leste, chineses e os timorenses partilhavam a promiscuidade da falta de estruturas urbanas adequadas. 
Chegamos à messe de oficiais era meio-dia. Ia alto o sol. Eu e o capitão Santos Clara vestidos de blazer azul. As calças, à partida brancas, à chegada cor de duna. 
Díli é uma planície. Espraia-se por um mar espelhado como um lago. Uma baía majestosa acentuada pela sombra imponente da vizinha ilha do Ataúro. Um porto incipiente abriga a pequena e anacrónica lancha onde flutua a esfarrapada bandeira portuguesa, ao longe destroços naufragados junto à superfície de barcaças japonesas da 2ª Grande Guerra. A longa avenida acompanha a marginal, terminando no bairro residencial do Farol de vivendas coloniais, construídas depois da 2ª Grande Guerra, abrigam chefes de departamento e escalões superiores do exército colonial. Por esta época, Díli dispunha de 16 km de asfalto esparsamente distribuídos por poucas estradas e ruas da capital. Três casas apenas sobreviveram à devastação nipónica da Grande Guerra. No aeródromo a que pomposamente chamaram aeroporto de Díli, quando é dia de São Avião, um Land Rover limpa a pista dos pachorrentos búfalos, das vacas balinesas e dos porcos selvagens. A principal artéria comercial atravessa Díli de ocidente a oriente, pelo centro, espinha dorsal da capital. Ali se alberga o Governo (imponente edifício pomposamente denominado Palácio) e o Museu cujo nome ostenta o vazio de todos os tesouros exportados por anteriores governadores e colonizadores, ao longo dos séculos. Um museu vazio, dois polícias sinaleiros nas horas de ponta, e poucas pessoas pachorrentamente sentadas nas esplanadas. Bares, como o “Texas” e a “Tropicália”, onde os soldados e a bebida silenciam a progressivamente maior distância de Portugal. É ali que, à noite se podem encontrar os bas fonds de Díli. Não só as prostitutas, mas as máquinas de póquer e as slot-machines. O submundo, a vida subterrânea, o moroso afogar de esperanças e sonhos há muito olvidados. Uns, poucos, restaurantes servindo comida chinesa. Díli, setembro 1973, uma cidade sem vida, morrendo devagar nas próprias cinzas (que se irão acender, na realidade, em 1999), por entre o silêncio e a triste voz rítmica dos tokés, o calor pútrido e o voo alado das desmesuradas baratas voadoras.
Durante o dia podiam-se ver alguns, poucos, carros particulares, e muitas viaturas oficiais com a sua típica cor negra. Inúmeras motorizadas ruidosas circulavam por entre os jipes do exército, conduzidos pelos militares. Esperam pacientemente em frente ao liceu ou ao cabeleireiro, pelas esposas, tornadas professoras de liceu, dos oficiais do exército colonial português. Estarão mesmo no liceu, na escola primária ou no cabeleireiro? O pessoal militar, a pé ou nas Berliets e Unimogs. Por entre os timorenses, veem-se chineses. Díli é isto, a desolação. A devastação viria mais tarde. Nas colinas, num local para esquecer, relíquia de uma guerra perdida, estavam as instalações militares com o seu quartel-general e os barracões de zinco, insalubres e insanitários. Pode ter sido um ótimo local duzentos anos antes, bem abrigado pelas montanhas circundantes. A sua localização estava fora do tempo e do espaço. Quinhentos metros acima do nível do mar num local proeminente, abrigado pela maciça flora, estavam os dois hospitais. Um grupo de edifícios mais modernos para o hospital civil, outro, mais antigo, para o militar dispondo de dúzia e meia de camas.
Esta cidade pretensamente europeia é triste. As palapas progridem, crescendo para os passeios quase inexistentes, albergam os timorenses que vivem sem luz elétrica, sem água encanada nem esgotos. Dez ou quinze crianças, em cada família, brincando em volta alheias a tudo. O ciclo do caranguejo, não é, meu caro Josué de Castro? Que lhes interessa se a miséria é a mesma, será sempre a mesma? “ Aqui, Onde O Sol, Logo Em Nascendo, Vê Primeiro “, como a insígnia oficial proclama bem alto do escudo e brasão de armas do, então, Timor Português. 
Com isto, lego as imagens e as palavras. Fazem parte integrante da História. Não se irão repetir num milhão de anos. Isto presenciei: como transfigurar pachorrentas colónias do Pacífico em cenários de guerra e morte. Como oficial miliciano de Administração Militar colocado na Intendência, e não como um homem de armas profissional, senti-me como muitos que seriam seguidores da Junta de Salvação Nacional em Lisboa, forçado a três anos de solidão na remota, mas pacífica terra. Tive sorte, ao ir para Timor, pois não fora escolhido para dois anos de luta contra os movimentos de independência africana (Angola, Guiné ou Moçambique).

Chrys Chrystello*
*Jornalista, Membro Honorário Vitalício nº 297713

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