Será este o silêncio que o mundo precisa? Todo este silêncio, de Paulo Ramalho
Diário dos Açores

Será este o silêncio que o mundo precisa? Todo este silêncio, de Paulo Ramalho

Previous Article Liberdade. Pão. Paz.
Next Article Cancro da mama… Do Porquê ao Para Quê

“(…) sei bem que as palavras são o bordão do pensamento e 
que este é como um pássaro inconstante, a saltitar de ramo em ramo.”

Há histórias difíceis, duras, que nos puxam com uma mão e nos empurram com a outra; que nos cansam a cabeça, mas que se tornam viciantes ao ponto de não as conseguirmos abandonar.
Assim é Todo este silêncio de Paulo Ramalho, editado pela Letras Lavadas. O silêncio pode ser algo duro de viver, mas também pode ser uma companhia perfeita para determinados momentos. No entanto, quando este silêncio já é demasiado, verbalizar pensamentos, raízes e memórias é como um bálsamo para a nossa alma.
Guilherme Paixão vive sozinho, como um eremita, numa casa silenciosa e rodeada de livros e de memórias, não obstante a presença da filha, Clarisse, no andar de baixo do casarão. 
Até que lhe surge a companhia inesperada e inusitada de um jornalista que vem escrever sobre o insólito momento que a vila de Guilherme Paixão, Portela dos Ventos, está a viver. É que se estão a abrir buracos no chão, debaixo das casas, dos carros, das pessoas; o chão esburaca-se, simplesmente, e as pessoas daquela vila têm que saber viver com aquilo; como se alguém soubesse viver com o chão a abrir debaixo dos pés constantemente. Mas não será esta uma metáfora perfeita para a instabilidade da vida do Homem? Mas adiante!
Guilherme Paixão vê naquele jornalista a oportunidade de narrar o seu passado e os seus efeitos no presente, como se aquele homem, acabado de chegar a Portela dos Ventos, fosse um bom cofre para todos os seus segredos. E conta. Volta aos anos 60 e recorda como o ofício de médico o levou a casos tão difíceis de curar, assim como o fez encontrar a Maria Rosa, sua futura esposa e mãe da sua filha, que de louca e feliz tinha muito. Vivia aliada de tudo, sem noção de nada e, por isso, feliz! A paixão tresloucada de Maria Rosa pelo novo padre que chega a esta vila também marca determinantemente toda a trama desta história. É que o padre novo, rival do velho, se apaixona por esta mulher tão naturalmente bela e não consegue de si tirar aqueles sentimentos imensos, apesar de todo o pecado envolvido. 
Drama, tragédia e muito mais advêm deste amor, deste sentir de um padre por uma mulher, mas esta imagem não é mais do que uma realidade que persegue o nosso dia-a-dia; o da proibição de um padre amar e poder ser amado, tendo toda a liberdade para expressar e mostrar como é ser feliz sem correntes que o agrilhoam. 
Polémicas, por isso, tem também este livro, com tudo o que o Portugal dos anos 60 infligia aos portugueses, fosse nas mães que perdiam os filhos para a Guerra Colonial, fosse nestes jovens que se sentiam perdidos e sufocados no meio da selva, a lutar por qualquer coisa que o país queria, mas que eles não entendiam bem o quê! 
Nota-se isso num bilhete que um dos nossos soldados da época, demasiado jovem para carregar aquela armadura, envia à sua mãe, ansiando pelo regresso a casa, no sopé da lareira e do calor que uma mãe emana; um bilhete escrito com erros ortográficos e gralhas que mostram que o linguajar era, para muitos, semelhante ao escrever. E depois o outro bilhete, o anúncio da morte, a despedida através de um papel que aquela mãe não sabe ler e que o médico lê, pois além da sua função curativa assume também a de mensageiro da morte. Naquele momento, na mente de Guilherme Paixão apenas ressoava Fernando Pessoa: “Malhas que o Império tece/ Jaz morto e apodrece o menino de sua mãe.”
Quando as histórias são escritas a mais do que duas mãos, tudo ganha outra dinâmica e outro impulso. Esta é escrita a seis mãos. Por Guilherme Paixão, numa primeira parte feita em monólogo, pelo jornalista, numa segunda fase escrita como diário, e por Clarisse, num terceiro momento composto pela correspondência com o jornalista, já depois da sua partida, onde as saudades do amor que se foi estabelecendo entre ambos e o declínio do pai, pelo avanço da idade, são os temas fulcrais. É que o jornalista volta à sua terra quando os buracos de Portela dos Ventos começam a ser tapados pelas mãos das entidades que querem esconder a podridão do que por ali acontece. E conseguem, naturalmente!
Neste romance sente-se a influência da comunicação social, a impotência de um jornalista de dizer a verdade que o mundo precisa de saber, a malha que tece para levar aos jornais, à rádio ou ao pequeno ecrã aquilo que poucos sabem, o que não interessa que todos saibam! Até isso se percebe na correspondência entre este casal, de tão poderosa que é a escrita destes três narradores!
Mas se o homem deixa a terra, nem sempre a terra deixa o homem e é isso que acontece ao jornalista desta história, levando este Portela dos Ventos na mente e no coração, quando nunca pensou que tal pudesse ser possível. 
O certo é que este escritor consegue contar esta fantástica história entre narradores diferentes, todos eles personagens principais, sem perder o fio à meada; avançando e recuando no tempo, estabelecendo paralelos entre Maria Rosa e Clarisse, esposa e filha de Guilherme Paixão, respetivamente.
E aqui está toda a vivência mundana e simples do ser humano. Porque esta Portela dos Ventos pode ser qualquer vila ou lugarejo do nosso Portugal, o de antes ou o de agora, com as suas hipocrisias e falsidades do povo que dá à língua ou dos homens que viviam nos cafés e que lá exibiam a sua masculinidade. Sentimos aqui, também, as mulheres que sofriam em casa a dura realidade de serem capitãs de guerra, para os filhos e para os maridos, dos filhos perdidos, das paixões proibidas, da inibição de um amor verdadeiro e das trágicas consequências que isso pode trazer à vida de uma pessoa, da influência do lado espiritual e divino do feminino.
Tudo!
Todo o mundo está aqui! Somos nós neste livro de Paulo Ramalho.
Este livro é a vida, e é assim a literatura!
Um livro a não perder, de todo!

Boas leituras!


“E esperar que a literatura o absolvesse de não ter sabido amar sem magoar. 
Porque o meu pai conhecia as virtudes balsâmicas das palavras; sabia que as feridas da alma podem ser cicatrizadas pelo poder da escrita; 
e acreditava que é possível remir culpas dentro das páginas de um livro.”

Patrícia Carreiro
Diretora da Livraria Letras Lavadas

Share

Print

Theme picker