Diário dos Açores

Pobreza nossa de cada dia

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“Todos temos uma história para contar:
algumas estão escritas em livros,
outras estão confinadas aos corações.”
Savi Sharma

Na minha educação cristã, sempre ouvi dizer que Deus dá pobreza, mas dá limpeza e cada vez este provérbio me faz mais sentido! A verdade é que nascemos todos pobres, nus, só com a pele como proteção, e morremos da mesma maneira, à exceção da roupa, porque de pertences não levamos mais nada!
Cada vez mais sinto o pulsar do coração da nossa cidade de Ponta Delgada a decair, a apodrecer, como se tivesse as veias entupidas, como se para respirarmos fosse preciso apertar bem o ar dentro do peito para depois, em campo seguro, deixá-lo sair.
São muitos os membros perdidos e amputados que encontramos na escadaria da Igreja Matriz ou entre tantos outros locais das chamadas ruas nobres da nossa cidade.
Diria que todos estes membros juntos constituem um único ser, desprovido de emoção, de amor-próprio, de noção do exagero e de qualquer cuidado consigo e com os outros. E não falo apenas do palavreado que em nada convida a sentarmo-nos nas esplanadas que ladeiam o Largo da Matriz e arredores; falo dos odores envergonhados que se espalham pelas ruas, que nos ferem o orgulho por vermos a nossa cidade assim, mas a quem os provoca já é indiferente, o que – a meu ver – é o mais problemático.
Ninguém sabe se amanhã terá de viver na rua. Ninguém! Mas todos deveríamos saber o que permitimos fazer ou não ao nosso corpo, à nossa alma, à nossa dignidade. E andar à deriva na rua, com a sujidade como segunda pele e com o olhar a pedir mais do que se possa imaginar não é mostrar dignidade, é mostrar indiferença, falta de raciocínio, de oportunidade, também.
Se estas pessoas têm ajuda? Têm!
Se estas pessoas não querem receber ordens ou viver com regras? Não, não querem!
Mas o que mais me parece é que estamos perante uma situação em que algumas pessoas deixam de querer viver, desanimadas e tristes que estão com a sua vida. Tudo o que lhes pertence é transportado num trolley encontrado no lixo ou num saco do supermercado, daqueles de 0.50€, e este tudo se baseia numa almofada, um cobertor e pouco mais. E de dia para dia o poiso noturno vai mudando, por vezes debaixo das arcadas, noutras no canto da igreja, como se estivessem a procurar uma bênção, e noutras ocasiões, ainda, em casas abandonadas, onde mora a esperança de uma noite mais tranquila com menos frio e, quiçá, sem entrar chuva.
A vida é dura e quem vive ou trabalha em Ponta Delgada confronta-se com isso todos os dias. Todos sabemos que as entidades competentes tentam, que procuram resolver tudo o que se está a passar por entre a nossa calçada. Mas não é suficiente. Há qualquer coisa que está a falhar redondamente na nossa sociedade para termos esta quantidade exagerada de pessoas sem casa pelas nossas ruas.
Estas pessoas, que têm casas-chão, são como todas as outras, apenas com menos sorte, menos veemência e menos capacidade de resolver a sua vida.
Eu não tenho a solução, nem estou aqui com este intuito, simplesmente sinto a tristeza de quem me pede uma moeda para comer uma sandes e que eu, para não tornar aquilo rotineiro, não dou. Porque eu deixo a minha filha todos os dias na escola, o dia inteiro, para ter uma porção de moedas ao final do mês que me ajudarão a pagar as despesas habituais da minha família, uma casa em primeiro lugar.
Os tempos são difíceis. A gestão de uma vida também. Mas a vida é assim!

Patrícia Carreiro*

* Diretora da Livraria Letras Lavadas

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