Diário dos Açores

Atenção ao «Manifesto para a Leitura»

Previous Article Pedro Nascimento Cabral orador na sessão de abertura do Congresso Housing First
Next Article Tia Maria do Nordeste

Há dias o livreiro José Carlos Frias publicou no Correio dos Açores um «Manifesto para a Leitura», em que apresenta sete medidas que, segundo ele, ajudariam a reverter a grave falta de leitores na população açoriana globalmente considerada. O artigo de 29 de Outubro merece debate público, não apenas nas principais ilhas dos Açores, mas em todas as outras, e um debate que coloque frente a frente governantes, autarcas, directores de escolas, bibliotecários e os livreiros e editores activos no arquipélago. O livreiro da Solmar, de Ponta Delgada, diz que «urge criar um vasto e muito imaginativo programa, capaz de explorar todos os estímulos, desenvolver processos, envolver entidades, ganhar espaços com o objectivo último de incentivar e universalizar o gosto e o prazer da leitura». Mais do que exprimir queixumes e lamentações, importa, portanto, conversar abertamente sobre o que cada um destes protagonistas ou partes pode fazer e se compromete a fazer a curto, médio e longo prazo para inverter um estado de coisas alarmante que, num equilíbrio muito bizarro, a inércia de uns e a maledicência ou o azedume de outros é bem capaz de manter ad eternum sem verdadeira solução.
Uma discussão transmitida por streaming e aberta à participação de todos pode dar frutos que não fiquem a apodrecer lentamente no reservado dos gabinetes. Criar garantias de escrutínio sobre os compromissos alcançados num fórum deste tipo também se afigura essencial para que ele não se torne uma previdente almofada de contenção de descontentamentos num dado momento mais intenso, para depois dar em nada, como se de um balão desatado lançado ao ar se tratasse. Colocar os problemas sobre a mesa e mantê-los persistentemente à vista de todos é o único caminho para as decisões estruturais que faltam, e que terão de ir muito além dos ciclos eleitorais separadamente considerados. Querelas partidárias — tão enraizadas... — não podem sobrepor-se à urgência e acuidade das medidas (neste campo como noutros, obviamente) que valorizem e qualifiquem os açorianos e os Açores, e é preciso influenciar também essa mudança no ambiente político regional.
Vai em breve fazer um ano — foi a 29 de Novembro de 2022 — que publiquei neste mesmo jornal o artigo «Editoras, livrarias, bibliotecas públicas», o segundo de uma série de cinco intitulada «Para uma política cultural nos Açores», em que também aponto algumas medidas para a capitalização das empresas do sector livreiro e o reforço do serviço público de leitura, alargado ao máximo espectro de instituições. Compreendo o ponto de vista comercial do livreiro que pretende que as aquisições públicas de livros se faça a livrarias da Região, mas discordo que tenha de ser assim se as condições dadas directamente pelos editores forem mais vantajosas, permitindo comprar mais com o mesmo dinheiro; e tão-pouco me choca que — à semelhança do leitor comum — qualquer biblioteca que queira criar, melhorar ou ampliar o seu fundo compre livros em segunda mão e preço reduzido a alfarrabistas em-linha, pois assim poderá racionalizar o seu provavelmente curto orçamento. O livro é um objecto de uso, e quanto mais usado mais honrado e belo, pode dizer-se assim.
Outras maneiras há de compensar os livreiros de decisões deste tipo, quer ao nível da fiscalidade quer do transporte marítimo e aéreo, além do cheque-livro anual atribuído a menores de idade — que José Carlos Frias recomenda, e muito bem — para compras em livrarias açorianas. E sendo livrarias pontos de encontro privilegiado entre leitores e escritores em lançamentos de livros ou festivais literários, a aquisição de equipamento para transmissão instantânea de tais eventos — capacitando-as para alargar exponencialmente o seu raio de acção cultural — deveria obter contrapartidas fiscais (ou até, mais utopicamente, subsídios, aliás de pouca monta no caso). Aproximar as pessoas, diminuir distâncias e compensar os défices das ilhas pequenas e mais deficitárias também pode ser feito aproveitando as vantagens das tecnologias mais modernas, fazendo, aliás, cumprir por inteiro o desígnio autonómico de integração e inclusão do arquipélago como um todo.
Uma outra medida que me parece essencial é que todas as edições subsidiadas pelo Governo Regional ou pelos municípios dos Açores sejam obrigatoriamente postas à venda em livrarias, em vez de os seus promotores — como abusivamente tem feito o Instituto Açoriano de Cultura, e talvez outros — as venderem em exclusivo. Mais ainda: tais livros, suportados por dinheiros públicos a 100 % ou perto disso (para baixo, mas também para cima...), deveriam ter, por contrato, preços controlados e uma taxa de livreiro acrescida em 10 %, proporcionando-lhes uma maior exposição em loja (que merecem) e resolvendo assim a mais que precária distribuição oficial.
Olhando para o futuro e preparando-o, é excelente a recomendação de José Carlos Frias quanto à «formação de mediadores de leitura» desde a infância, em contexto escolar, bibliotecário e livreiro, e à «criação de horário escolar para leituras de prazer extra-curriculares». A literatura infanto-juvenil portuguesa é hoje de uma tal excelência, que esta é a ocasião perfeita para induzir nos petizes o prazer da leitura, apoiada ou autónoma. A figura do técnico das bibliotecas itinerantes da Gulbenkian, que conhecia cada um dos seus pequenos leitores e as suas preferências, pode servir de modelo a essa nova instância geradora de novos públicos e de novos hábitos, mas é também à própria criação ou reforço de bibliotecas móveis municipais ou intermunicipais que importa atender (é o «fazer chegar o livro a todos os lugares onde residem os seus potenciais leitores», a que se refere JCF). Levar escritores às escolas também é uma boa maneira de estreitar esse fosso aparente que separa a população do magnífico objecto de civilização que é o livro. Experiências «pioneiras» podem ser comunicadas a outros estabelecimentos de ensino, numa osmose em expansão. Imaginação, criatividade e ousadia ajudam bastante, e a acção cultural de Terry Costa na ilha do Pico é um grande exemplo de que é possível ir adiante.
A crescente vaga de turismo por estrangeiros também pode beneficiar as livrarias e os editores açorianos. O apoio da Direcção Regional de Cultura à edição bilíngue de autores e de obras de referência sobre os Açores foi uma boa medida, que importa testar e amplificar, com um prazo plurianual que construa uma representação identitária e não seja um mero somatório de casualidades fortuitas. E o facto de — cada vez mais — livreiros se tornarem editores, e editores igualmente livreiros, favorece-lhes em alguma medida a sustentabilidade empresarial e uma crescente proximidade com o público, aliás muito alargado sazonalmente, o que também pode ser comercialmente bom.
Será o «Manifesto para a Leitura» o gatilho para um debate alargado, em que os próprios jornais açorianos se envolvam convidando protagonistas e figuras destacadas, e deixando via aberta para que também os seus leitores escrevam sobre isso? Os problemas enfrentam-se de frente, e o caminho faz-se caminhando. É pelo menos o que se diz...

Vasco Rosa

Share

Print

Theme picker