Mário Freitas, médico especialista em Saúde Pública
Diário dos Açores

Mário Freitas, médico especialista em Saúde Pública

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“Açores devem preparar-se para a próxima pandemia, que é inevitável”

Médico especialista em Medicina do Trabalho, Graduado em Saúde Pública, Delegado de Saúde e profundo conhecedor da realidade dos Açores no sector, Mário Freitas, que também é colaborador regular deste jornal há vários anos, concedeu uma entrevista ao Diário dos Açores para falar de saúde pública e das doenças associadas a este período de Inverno que se aproxima.

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Aproxima-se o Inverno e com ele as preocupações, sobretudo nos mais idosos, sobre aquilo a que se chama “tripla epidemia” (circulação em simultâneo dos vírus SARS-Cov2, Influenza e Sincicial Respiratório). Como é que as pessoas, sobretudo as mais frágeis, se devem preparar?
Várias epidemias em simultâneo, sazonalmente no Inverno, é uma constante no período entre Dezembro e Fevereiro, no hemisfério norte. Em 2020 e 2021 usamos medidas de prevenção excepcionais, como o uso de máscaras e a desinfecção frequente das mãos. Isto implicou que tivéssemos sido bastante eficazes no combate não apenas a um vírus, mas a uma série de outros agentes. O fim da prática geral destas medidas levou ao aparecimento, em números semelhantes aos do passado de surtos epidémicos provocados por esses vírus.
O uso de máscara em locais propícios a contágios é uma boa prática, que cada cidadão pode e deve praticar sempre que entenda que o deve fazer.
Por outro lado, as autoridades devem monitorizar a situação epidemiológica, tomando as medidas adequadas, logo que necessário, permitindo que aquilo que possa ser prevenido - ou controlado - numa fase inicial ganhe dimensão, e se torne incontrolável.

Como é que analisa o caso dos Açores na prevenção e tratamento destas doenças?
Em Saúde Pública devemos preparar-nos para o pior, esperando que aconteça o melhor.
O planeamento, sobretudo em contexto de crises sanitárias, é fundamental. Procurar o melhor para a saúde da população implica tomar decisões, e o que se espera de quem tem de tomar essas decisões é coragem para as tomar, em nome da defesa da saúde da população, respeitando o Estado de Direito.
Os Açores foram uma das regiões de Portugal onde primeiro se fez sentir, e com maior impacto, a “Pandemia de consequências da pandemia”.
Em Janeiro de 2021, segundo os relatórios do SIGiCA (da DRS), o hospital de Ponta Delgada tinha 10.000 inscrições na lista de espera cirúrgica. Dez mil! Um recorde, olhando para os dados publicados desde 2018.
O hospital da Horta e o hospital de Angra, juntos, tinham 3.600 inscrições em lista de espera cirúrgica. Se cada inscrição correspondesse a uma pessoa, 6% da população açoriana aguardava uma cirurgia, em Janeiro de 2021 (no fim do primeiro ano da Pandemia). E perante estes números havia quem não se sentisse envergonhado, daquela vergonha capaz de fazer os responsáveis enfiarem-se num buraco no chão!
No fim de 2022, o relatório da mesma entidade, referia que no hospital de Ponta Delgada as inscrições em lista de espera cirúrgica estavam na casa dos 6 milhares, sendo 4.000 nos hospitais de Angra e Horta. Isto quando 2022 foi o ano em que a Covid-19 atacou em força São Miguel, a ilha mais atacada pela Pandemia, e onde o hospital de Ponta Delgada chegou a ter quase 100 pessoas internadas com Covid-19.
Isto significa que com planeamento, organização e monitorização epidemiológica, se conseguiu atenuar o íimpacto da Pandemia na prestação de cuidados, em 2021 e 2022, no Hospital de Ponta Delgada.
Listas de espera infindáveis, o acesso dos doentes aos cuidados seriamente comprometido, no sector público, levando a uma necessidade permanente de recurso ao privado. Consultas de seguimento canceladas e adiadas meses sem fim, rastreios que não foram feitos, ajustes na medicação que não aconteceram, crianças que esperaram anos por uma cirurgia. Isto não pode rtornar a acontecer.

Tem escrito muito, neste jornal, sobre as consequências da pandemia. Acha que as pessoas desvalorizaram a doença, depois de estarem vacinadas?
Muito. Os rumores postos a circular nas redes sociais também ajudam... É crucial que as pessoas se protejam. Mantenham cuidados. Cumpram o Programa de vacinação.
Além da taxa de letalidade desta doença (que continua a não ser desprezível nos mais frágeis e vulneráveis) o problema da Covid Longa é algo para o qual a população (e os profissionais) ainda não estão despertos. Quando o impacto da Covid longa chegar (e vai chegar) vai ser terrível para o serviço público de saúde. Lá chegaremos.

Estranha o facto de a mortalidade ter aumentado nos Açores durante e depois da pandemia e não se ter procurado explicações para isso?
Olhando para os números de 2022 o que parecia mais estranho era a divergência entre os valores das fontes de informação DRS e DGS, e tal acontecer, com notória dimensão, a partir de Março de 2022.
 Em vários períodos de 2022, a nível nacional, houve um aumento da mortalidade, acima do expectável. Essa situação, aconteceu também nos Açores, de forma sustentada, ao longo do mesmo ano.
Vivendo de perto essa fase da epidemia, e recordando os altíssimos valores de incidência durante boa parte desse ano, poderia especular uma possível relação causal, a dois níveis: por um lado, a eventualidade de pessoas com doenças crónicas, que descompensaram durante este período pandémico (porque elas deixaram de ir às consultas regulares, porque não tiveram acesso às mesmas, etc), acabando por morrer em consequência das doenças crónicas que já tinham; por outro lado, poderemos ter tido mais desfechos fatais decorrentes da Covid-19 do que aquilo que se colheu directamente…
Uma das principais fontes de informação em saúde é o que consta no certificado de óbito. Ora, esta informação tem de ser analisada e tratada em tempo útil, para se perceber o que está a acontecer à saúde da nossa população, e poder tomar medidas atempadas. Não basta anunciar que tal vai ser feito. É preciso que se faça. Repito, atempadamente.

Da sua experiência e conhecimento, no geral, como é que estamos de saúde pública nos Açores?
Os últimos 3 anos demonstraram que há várias formas de gerir a saúde pública numa situação de crise, umas melhores do que outras.
Por exemplo, nos Açores, numa fase inicial da pandemia Cocvid-19, em 2020, a “região fechou-se”, inclusive entre ilhas, e até concelhos.
Está demonstrado que medidas extremas de saúde pública podem ter um impacto fortíssimo, a nível social e económico. Mais tarde, com muito mais casos a acontecerem, em 2021, a vida voltou a uma certa normalidade pandémica, sobretudo numa altura em que o caos estava instalado no continente.
Em 2022, com a grande onda Omicron em curso, o Hospital de Ponta Delgada manteve um nível de assistência à população, em combate às listas de espera, absolutamente notável. Ímpar a nível nacional.
Estes resultados de 2021 e 2022 são a melhor avaliação que Gustavo Tato Borges e Cristina Fraga têm do seu notável trabalho, de serviço à população açoriana. Porque é pelos resultados que se avalia o trabalho de alguém.
A Autonomia dos Açores permite fazer diferente, permite fazer melhor. Haja vontade.
Em qualquer crise, num acidente, um dos maiores problemas que podemos ter são os mirones, os “curiosos”.
Nenhuma pessoa ajuizada deixaria que os curiosos sobrepusessem as suas opiniões aos pareceres de técnicos no terreno, numa crise. Para impedir que tal aconteça em Saúde Pública há que ter estruturas “fixas”, assentes na epidemiologia e na saúde pública, reformando os serviços de saúde pública da Região Autónoma dos Açores.
Criar as condições necessárias para que os Açores estejam preparados para a próxima pandemia, impedindo que se repitam cenários de desorientação (como o episódio do avião de Hong Kong que entrou em São Miguel, no início da Pandemia COVID19), ou em que a intervenção política regional seja desadequada (como aconteceu em 2009/10, com a Gripe A).
Preparar a próxima pandemia (que é algo inevitável - só não sabemos a data em que tal acontecerá) exige criar condições para que os Açores estejam preparados de encontro à sua realidade, muito própria, arquipelágica, dispersa por 9 ilhas, no meio do Atlântico norte.
Independentemente daquelas que possam ser as orientações a nível nacional, os Açores podem, e devem, pegar na evidência científica e tomar as melhores decisões, na defesa da saúde do povo açoriano.
No início da pandemia COVID19, em serviços de saúde da região, não haviam as máscaras adequadas para proteger os profissionais… e, apesar de tudo aquilo que já sabíamos, até empiricamente, mais tarde o uso de máscaras na comunidade andou a reboque de orientações nacionais, que não eram as mais adequadas. Seguir, acriticamente, indicações erradas de outros não é defender os interesses da nossa população. Não o é.

jornal@diariodosacores.pt

 

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