Diário dos Açores

A Madrugada em Birkenau

Previous Article Previous Article Investidores da Bermuda reúnem com o CESA
Next Article Mário Freitas, médico especialista em Saúde Pública Mário Freitas, médico especialista em Saúde Pública

«Não posso aceitar ser tocada.Evito ir ao cinema quando há uma fila de espera. Quando se foi tratada como carne, é muito difícil convencer-se que se permaneceu um ser humano.»

in A Madrugada em Birkenau


Sem quaisquer receios de cair na pobreza do lugar-comum, é justo afirmar-se que esta obra, publicada pela Quetzal, vem enriquecer o conjunto de documentos que importa conhecer sobre os anos da guerra e as consequências que daí advieram. A par das brilhantes narrações de Primo Levi, de Herta Müller, Laurence Rees ou de João Pinto Coelho, por exemplo, é-nos agora dada a conhecer a obra A Madrugada em Birkenau, redigida com base no relato de Simone Veil (francesa, judia, presa e deportada), assim como nos testemunhos de amigos seus que, como ela, sobreviveram às atrocidades perpetradas pelo movimento Nazi.
Todos reconhecemos e nos indignamos com as constantes polémicas e, sobretudo, com os deploráveis oportunismos literários e outros em torno das questões que envolvem a II Guerra Mundial, o Holocausto ou Shoa ou a banalização do uso, por meros desígnios economicistas, da palavra Auschwitz. Eis-nos, , por isso, desembocados num tempo em que se torna imperioso amplificar a voz daqueles que não procuram outra coisa além de perpetuar a memória – clara e precisa –, do que foi o período mais negro da nossa História recente, sem conceder espaço a cambiantes que derivem em deformações históricas ou suavizações convenientes. Por respeito à memória dos mais de seis milhões de pessoas que pereceram, não devemos permitir brechas por onde se adentrem equívocos ou medrem ambiguidades e imprecisões. Este é um tema onde a parcialidade não poderá florescer. Como nos alerta a autora de grande porção dos testemunhos aqui reunidos, «(…) não temos o direito de reescrever a História.».
Trata-se de um volume em notória contracorrente, já que dá a conhecer, em primeira pessoa e escusando-se a discursos eufemísticos ou encardidos por sentimentalismos pacóvios, as atrocidades que marcaram a realidade dos judeus franceses, não apenas ao longo do período de Ocupação, mas também nos difíceis anos que se lhe seguiram. Aliás, a pujança e autenticidade destes relatos vão um pouco mais além, ao ponto de, em consciência, repor a verdade de factos brotados do imaginário de alguns e consagrados em obras tidas com best-sellers mundiais: «É preciso que se diga que encontrar qualquer pedaço de jornal era algo excecional. Fico espantada quando ouço alguns falarem de bibliotecas e de livros que liam nos campos.»
A obra abre com a narração impressionante da magistrada Simone Veil, a «personalidade preferida dos franceses», em 2010, abordando os anos da sua infância em Nice, junto da família, mas prossegue, depois, até às perseguições raciais que marcaram a atuação do Nacional Socialismo um pouco por toda a Europa. Descreve, por vezes de forma arrepiante, mas crível, a sua detenção, o desmembramento do seu núcleo familiar e a posterior deportação em condições absolutamente animalescas, assim como a vivência horrífica em diversos campos de concentração. Prossegue com a narração do regresso e o problemático retomar de vidas que haviam ficado em suspenso, para culminar, com alguns testemunhos clarividentes, mas igualmente chocantes de outros sobreviventes próximos de Veil, manifestados em jeito de diálogo com a antiga Presidente do Parlamento Europeu, e com David Teboul, redator desses testemunhos.
«Deste legado, não me é possível dissociar a lembrança sempre presente, obsessiva, mesmo, dos seis milhões de judeus exterminados pela única razão de serem judeus.» Simone Veil, falecida em 2017, com noventa anos de idade, deixa-nos aqui um verdadeiro alerta: é importante que estejamos cientes dos riscos que todos corremos ao permitirmos o recrudescimento de movimentos políticos similares aos que estiveram na origem destas barbáries. Parece-me, por isso, muito avisado manter estes testemunhos à superfície da lembrança, alertando os mais jovens e, sobretudo, os mais incautos ou desiludidos que nada devem tomar como garantido. Não esqueçamos que, hoje, em Auschwitz, o relvado é cuidado, há árvores e «até o arame farpado parece sereno», mas, não há assim tanto tempo, «O campo era o cheiro dos corpos que ardiam.».
Simone Veil, A Madrugada em Birkenau, Quetzal Editores, maio de 2021

 

Telmo Nunes

Share

Print

Theme picker