Diário dos Açores

Dignificar a Democracia

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“Para o cidadão comum, a estabilidade governativa é um fator fundamental e imprescindível, dada a interferência dos agentes dos poder governamental na sociedade portuguesa.”

O tempo enevoado dos últimos dias, sendo embora comum para a época, parece acompanhar  o sentimento de estupefação e insegurança da opinião pública, gerado pela demissão do Primeiro Ministro. A imprevisível decisão terá, certamente, consequências a todos os níveis, sendo as económicas e sociais as mais significativas.
Para o cidadão comum, a estabilidade governativa é um fator fundamental e imprescindível, dada a interferência dos agentes dos poder governamental na sociedade portuguesa.
É por isso que os cidadãos dão mais importância às medidas que o Orçamento do Estado para o próximo ano contempla, e que respeitam ao aumento dos salários e pensões, à baixa dos impostos e à melhoria dos cuidados de saúde e da qualidade do ensino, que aos constantes, repetitivos e eleitoralistas discursos e declarações dos políticos e governantes.
Em momento tão difícil e imprevisto para o Pais, que as instituições do regime democrático saberão, certamente, ultrapassar, importa que todas as forças políticas reflitam sobre as causas que geraram esta situação e sobre ações e decisões atitudes, repetidamente insinuadas pela “vox populi”, considerando que os agentes do poder, ao contrário do que dão a entender, não estão acima da lei, nem constituem uma casta de puros e intocáveis.
Na sua habitual sensatez e entendimento, o povo que há cinquenta anos aplaudiu o advento da democracia, já deu a entender através da crescente abstenção e de permanentes críticas, que não se revê bem representado nas instituições democráticas.
A permanente falta de auscultação e de contato dos eleitos com o eleitores é, habitualmente, substituída pela opinião das estruturas partidárias onde, por vezes, se arrebanham seguidistas, carreiristas, interesseiros e gente sem visão e créditos pessoais, contribuindo dessa forma para o descrédito das forças partidárias.
Porque a sociedade evolui e os problemas são diferentes, nos últimos anos, têm surgido novas formações partidárias com novos programas e propostas para responderem às questões ambientais e das energias alternativas. Todavia, no setor económico e no domínio da democracia, há um visível retrocesso a doutrinas que causaram profundas e negativas marcas na história contemporânea.
Novos partidos e até outros do espetro partidário tradicional, têm enveredado por ideologias populistas e pela conservação do modelo económico neoliberal, apresentando-os como respostas políticas aos problemas sociais que afetam não só os países desenvolvidos, mas a humanidade no seu todo.
Na encíclica “Todos Irmãos”, publicada em 2020, o Papa Francisco, com a autoridade que todos lhe reconhecem, afirma: “O mercado, por si só, não resolve tudo, embora às vezes nos queiram fazer crer neste dogma de fé neoliberal. Trata-se dum pensamento pobre, repetitivo, que propõe sempre as mesmas receitas perante qualquer desafio que surja”.
A este propósito, o Papa foi ainda mais contundente ao assinalar, em novembro passado, a o Dia Mundial do Pobre: “Não nos deixemos seduzir pelos cantos de sereia do populismo, que explora as necessidades do povo propondo soluções muito fáceis e precipitadas. Não sigamos os falsos ‘messias’ que, em nome do lucro, apregoam receitas úteis apenas para aumentar a riqueza de poucos, condenando os pobres à marginalização”.
Neste tempo de instabilidade governativa, mas de forte pendor eleitoralista, exige-se  contenção no discurso, verdade na análise e recato nos comportamentos de modo a prestigiar o exercício da política e dos seus agentes e o valor da democracia.
Este é um tempo propício às veleidades e desmandos da partidarite, doença de que enfermam militâncias sem controlo e pouco refletidas. Em face disto, um alto responsável da nação afirmou recentemente: “Para se ser estadista e para que as pessoas reconheçam o que fazemos, a última coisa em que devemos pensar é mesmo na popularidade.”1
Não compreendo, pois, como é que em Jornadas Parlamentares dos partidos da coligação, realizadas esta semana em Ponta Delgada, o líder do CDS/A e Vice-presidente do Governo, numa intervenção pública, dirigiu-se aos deputados Vasco Cordeiro, Nuno Barata e José Pacheco, nestes termos pouco protocolares: “Se o complemento de pensão não for [aprovado] a culpa é do Vasco Cordeiro, do Barata e do Pacheco.” Segundo a prática parlamentar (e as jornadas são consideradas trabalho parlamentar e como tal suportadas pelo Orçamento da Assembleia) qualquer deputado deve ter um tratamento respeitoso. Não foi o que aconteceu, por muito ou pouco que gostemos do adversário político, trata-se de um eleito democraticamente.
Estes procedimentos públicos denotam falta de urbanidade e são exemplo da “politiquice” criticada pelo Presidente do Governo.  
É nos momentos mais críticos da vida política que os líderes revelam as qualidades exigidas ao exercício dos cargos que ocupam, de entre elas o espírito de diálogo e o respeito pelas opiniões contrárias, fundamentos da liberdade e da democracia.
Estes episódios ferem a sensibilidade dos cidadãos eleitores. Para eles a autoridade deve ser exemplo de respeito, para ser respeitada. De contrário, cava-se ainda mais o fosso entre os auto-denominados “servidores” da causa pública e os homens e mulheres que os elegeram.
    No tempo que atravessamos, todo o cuidado é pouco para defender a democracia. Cabe, pois, aos agentes políticos, dignificá-la.

*Augusto Santos Silva, Presid. Assemb. da República, entrevista ao Jornal PÚBLICO, 9/11/2023

José Gabriel Ávila*
*Jornalista c.p.239 A
http://escritemdia.blogspot.com

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