Diário dos Açores

Saúde Pública e a Saúde do público, semana a semana (30):

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A nave sem rumo dos “Porcos no Espaço”

Preâmbulo: mais uma semana passou, depois da divulgação do Relatório do Tribunal de Contas. Não houve notícias a destacarem o facto de um Hospital, o HDES, de Ponta Delgada, estar, em 2022, fora do conjunto daqueles em falência técnica. Nem comissões de inquérito sobre tal facto. Nem sequer conferências de imprensa. Imaginemos o inverso: que, em 2022, o único Hospital dos Açores em falência técnica tivesse sido o HDES… o leitor consegue imaginar quantas aberturas noticiosas, quantas conferências de imprensa e quantas comissões de inquérito teríamos? E abaixo-assinados? No mínimo, uma dúzia. Sem falar nas vestes que seriam rasgadas em público. “Lá vamos, cantando e rindo…”, não é verdade…?

A Ciência da Semana: Ainda vale a pena prevenir o SARS-CoV-2 nos serviços de saúde?

No início da pandemia do SARS-CoV-2, os hospitais implementaram medidas para prevenir a transmissão nosocomial (em serviços de saúde) do SARS-CoV-2. Essas medidas incluíam o uso de máscara, a restrição de visitas, limitação na ocupação do hospital, a alteração da ventilação, testes a todos os pacientes na admissão (e às vezes em série, depois disso), rastreio de contactos e/ou aos funcionários. Muita coisa mudou desde os primeiros dias da pandemia. A morbilidade (doença) e a mortalidade (morte) associadas ao SARS-CoV-2 diminuíram, mercê da imunidade generalizada adquirida, através das infecções e das vacinas, das variantes em evolução e de tratamentos eficazes. As hospitalizações e mortes pelo SARS-CoV-2 são agora mais baixas, especialmente por infecção. O uso de máscara fora dos hospitais é raro, os eventos sociais são comuns e cada vez menos pessoas com sintomas de SARS-CoV-2 optam por fazer o teste, ou isolar-se, se os resultados dos testes forem positivos. Fazem mal, mas é assim que fazem.
As administrações hospitalares, as conscientes, enfrentam o dilema de decidir se os hospitais também podem regressar às práticas pré-pandémicas, ou se os cuidados de saúde devem ser diferentes. As conscientes, porque onde reina a inconsciência não se reflecte sobre qualquer risco. Aliás, nestes maus exemplos há uma pressa insana em retirar medidas preventivas (e de defesa dos mais frágeis), sem análise adequada, só porque sim. Ou pior, só porque não.
A morbilidade potencial do SARS-CoV-2 nosocomial permanece elevada, porque os hospitais concentram o subconjunto da população que continua em risco aumentado de complicações, nomeadamente os adultos mais velhos, as pessoas com o sistema imunitário enfraquecido e os que têm doenças crónicas. Muitos dos danos causados pelo SARS-CoV-2, e outros vírus respiratórios, devem-se a exacerbações de doenças crónicas, que levam a ataques cardíacos, insuficiência cardíaca congestiva, doença pulmonar obstrutiva, acidente vascular cerebral, ou superinfecções bacterianas. Na opinião dos articulistas Michael Klompas, MD, MPH, Meghan A. Baker, MD, ScD e Chanu Rhee, MD, MPH, no JAMA de 10.11.2023, 3 aspectos devem ser tidos em conta para saber se os hospitais devem tomar medidas adicionais para proteger os pacientes do SARS-CoV-2, e de outros vírus respiratórios: frequência, morbilidade e evitabilidade. Os dados sobre frequência e evitabilidade são conhecidos. Dezenas de milhares de infecções por SARS-CoV-2 adquiridas em hospitais foram documentadas, e estas são apenas a ponta do iceberg. Muitas infecções não são diagnosticadas, porque são assintomáticas, ocorrem no início da hospitalização ou são erroneamente atribuídas a exposições na comunidade, ou ocorrem após a alta hospitalar. Durante os surtos, até 10% dos pacientes hospitalizados com SARS-CoV-2, e outros vírus respiratórios, podem ter adquirido a infecção no hospital. Ninguém esqueceu decerto o infeliz caso ocorrido no Lar do Nordeste… Da mesma forma, temos dados de que as infecções virais respiratórias nosocomiais podem ser prevenidas. O uso de máscara pelos profissionais de saúde está associado a uma redução de 50% a 60% das infecções virais respiratórias com origem hospitalar; as máscaras podem prevenir infecções adicionais nos pacientes, porque fornecem um controlo superior na fonte. A testagem universal ao SARS-CoV-2, e a outros vírus, na admissão está associada a menos infecções de origem hospitalar. As infecções de origem hospitalar estão frequentemente associadas a visitas sintomáticas, pelo que a prevenção adequada inclui necessariamente a adequada triagem das visitas.
Quanto à morbilidade e mortalidade atribuíveis ao SARS-CoV-2 em pacientes hospitalizados, sabemos que no início da pandemia as taxas brutas de mortalidade de pacientes com SARS-CoV-2 nosocomial eram muito elevadas, da ordem dos 25% a 35%, caindo para aproximadamente 20% com a vacinação e a variante Delta, e aproximadamente 10% com a variante Omicron, e altos níveis de imunidade populacional.
Dave e colegas, num estudo em que usaram dados de toda a cidade de Estocolmo (Suécia), para identificar todas as infecções por SARS-CoV-2 diagnosticadas no 8º dia de internamento, ou mais tarde, entre março de 2020 e setembro de 2022, verificaram que em 538.951 internamentos houve 28.909 hospitalizações com diagnóstico SARS-CoV-2, dos quais 2.203 foram considerados nosocomiais (7,6% do censo SARS-CoV-2). Os picos nos casos nosocomiais foram associados a surtos na comunidade. A taxa bruta de mortalidade em 30 dias para pacientes com SARS-CoV-2 nosocomial foi de 34% no período pré-vacinação, 21% na vacinação precoce e período pré-Omicron e 14% no período Omicron. Os investigadores também avaliaram o tempo de internamento hospitalar, que aumentou de uma mediana de 6 dias no período pré-vacinação, para 13 dias no período pré-Omicron, e para 19 dias no período Omicron.
Actualmente, o SARS-CoV-2 nosocomial continua a ser comum. É muito difícil imaginar os hospitais a voltarem a adoptar todas as medidas de prevenção de infeções que implementaram no auge da pandemia. No entanto, chegámos a um ponto em que podemos ser selectivos nas medidas que escolhemos, e no momento em que as implementamos. O uso de máscara nos hospitais, os testes de admissão e a triagem das visitas são provavelmente as intervenções mais importantes. A estreita relação entre a incidência viral respiratória na comunidade e as taxas de infecção nosocomial sugere que a implementação selectiva destas medidas em períodos de transmissão comunitária elevada poderia baixar drasticamente as transmissões nosocomiais. Os autores do artigo acreditam que o uso estratégico de medidas de prevenção selectiva em períodos de aumento da transmissão continua a ser justificado. Haja quem monitorize a montante.

Os dados para análise: Uma lista de verificação para andar de avião

O dr RYAN MCCORMICK, no dia 27/10/2023, escreveu um artigo que vale a pena ler, a propósito de questões de uma sua paciente, antes de embarcar no seu primeiro voo desde o início da pandemia. “Colocar centenas de pessoas num míssil (com asas e uma cabine pressurizada) e depois estar a 40.000 pés pode proporcionar uma grande oportunidade de ver o mundo, e de respirar a respiração de outras pessoas durante horas a fio”, começa ele.
Um estudo mostrou que se nos sentarmos na mesma fila de alguém com uma doença respiratória, temos 80% de probabilidades de contrairmos essa mesma doença. Então, se alguém pretende reduzir o risco de contrair alguns vírus respiratórios, deve usar máscara N95/KN95 no avião. Claro que receberá um olhar desagradável, ou um comentário sarcástico. Mas, também sabemos que qualquer médico que entre sem máscara numa sala, para cuidar de um doente com Covid, tuberculose, gripe, VSR ou pneumonia, é doido. Então, se o uso de máscara funciona nestas situações, funciona para o indivíduo em situações de risco muito menos elevado.
Claro que se alguém não considera, em qualquer circunstância, usar máscara no avião, não há problema. “A escolha é individual, e continuará a ser, até que uma variante de pesadelo do SARS CoV-2 evolua no próximo ano”, conclui o médico.

A homenagem da semana: “Porcos no Espaço”

“Pigs in Space” era um sketch do “The Muppet Show”, “Os Marretas”, que apresentava as façanhas do Capitão Link Hogthrob, do Primeiro-Imediato Piggy e do Dr. Julius Strangepork, que lideravam uma tripulação, a bordo da nave espacial “Swinetrek”. O sketch é uma paródia a “Star Trek, Lost in Space”.
O capitão manda, mas na realidade não manda. O comando real é de Piggy, a bem conhecida porca que se impõe pela sua força e pela sua inacreditável auto-estima. Uma nave espacial que vagueia, perdida, sem rumo. Uma fabulosa paródia, que crescemos a apreciar, e que nos deliciava. Estávamos tão longe de perceber que um dia o veríamos, numa empresa perto de nós. Não como paródia, ou comédia, mas como uma tragédia, citando alguém de má-memória. Uma tragédia em vários actos. E, triste demais.

Mário Freitas*

*Médico  consultor (graduado) em Saúde Pública, com a competência médica de Gestão de Unidades de Saúde

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