Diário dos Açores

A Capitoa, de João Paulo Oliveira e Costa

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Aprendi muito mais sobre o mundo da Idade Média ao ler O Bobo, Eurico o Presbítero e Lendas e Narrativas, de Alexandre Herculano, do que no livro e nas aulas de História do secundário, e tive um bom professor, muito competente e que gostava de ensinar. No estudo da história estamos perante abstrações, esquemas de personagens e ambientes; no romance histórico, diferentemente, nós vemos/assistimos à vida na época em que decorre a ação, o que nos permite acompanhar a vivência das personagens no seu ambiente histórico e na mundividência que lhes era própria.
Vem isto a propósito do último romance que li, A Capitoa, de João Paulo Oliveira e Costa. Quando a aposentação me permitiu dispor de tempo para ler muitos livros que as obrigações académicas me tinham obrigado a deixar de lado, uma das obras a que deitei mão foi à História dos Açores. Do Descobrimento ao Século XX (MATOS, Artur Teodoro de; MENESES, Avelino de Freitas de; LEITE, José Guilherme Reis (direção Científica). I e II Volumes. Angra do Heroísmo: Instituto Açoriano de Cultura, 2008). Como não podia deixar de ser, aprendi imenso sobre os Açores, nomeadamente sobre a sua descoberta, o seu povoamento e toda a história que se lhe seguiu. Fiquei, portanto, informado sobre os séculos XV e XVI açorianos, mas uma informação em estilo historiográfico, muito diferente da que se colhe em A Capitoa, que Oliveira e Costa, logo na capa do livro sublinha ser um “Romance Histórico”. Enquanto o texto da História dos Açores nos fornece um conhecimento seco da época do descobrimento das ilhas, do seu povoamento e desenvolvimento posterior, o texto do romance põe-nos a ver os povoadores, os seus continuadores e as suas atividades na concretude de seres humanos de carne e osso, nas suas relações consigo mesmos e com os outros, de modo que parece estarmos na época a assistir à vida vivida nas ilhas. Esta sensação do leitor deve-se ao facto de o autor do livro ser um eminente historiador, professor catedrático do Departamento de História da Universidade Nova de Lisboa, com larga produção no campo da História, concretamente sobre a época em que decorre a ação do romance; para constatar o que acabo de dizer, basta consultar o seu currículo. Além disso, João Paulo Oliveira e Costa foi diretor do CHAM (Centro de História d’Aquém e d’Além Mar), integrado na Universidade Nova de Lisboa e na Universidade dos Açores e que, por sua vez, integra o Centro de Humanidades da Universidade dos Açores, pelo que, nas suas palavras, teve “a necessidade profissional (ou a desculpa) para visitar várias vezes por ano a região” (p. 13), o que lhe permitiu conhecer profundamente os Açores e a sua história.
Na “Nota Explicativa” (pp. 395-398), o historiador romancista informa quais das personagens do romance que tiveram existência histórica - D. Brites de Macedo, a capitoa, o seu marido e o seu filho, os dois primeiros capitães donatários do Faial e do Pico, e o bispo D. Fradique – e que foi buscar às Saudades da Terra, de Gaspar Frutuoso, “as informações sobre as desventuras dos filhos de segundo capitão”. Todas as restantes personagens, diz Oliveira e Costa, são ficcionais, embora se tenha de reconhecer que se apresentam ao leitor com uma tal consistência que poderiam ter existido de facto, tal é o realismo de que estão revestidas. À maneira que se avança no romance, fica-se com a sensação de estar na Vila da Horta a assistir à vida dos primeiros povoadores e seus descendentes e às histórias que ouvem e contam, numa ilha em cujo porto atracam embarcações portuguesas e de outros países e regiões.
A leitura do romance não nos fecha apenas nas ilhas do Faial e do Pico, no modo de viver das suas gentes, nas suas casas, ruas e tabernas, com os seus heróis e vilões, virtudes e pecados, invejas e ódios, virtudes públicas e vícios privados. A ação do romance estende-se às diversas ilhas do Grupo Central, destacando a importância dos Açores nas viagens de regresso dos navios vindos das Índias, e da importância da “Armada das Ilhas” na sua proteção contra a pirataria.
A trama criada por Oliveira e Costa em torno de D. Brites permite ao autor enquadrar/relacionar o que se passa nas ilhas com o que é vivido noutras geografias com as quais os Açores tinham de alguma maneira relação. É assim que o leitor, com as personagens do romance, viaja até às praças do Norte de África, conquistadas pelos portugueses aos mouros, para onde é exportado trigo produzido nas ilhas, e assiste ao seu modo de viver; acompanha a viagem cheia de aventuras de um pagador de promessas, personagem importante do romance, que vai do Faial à Terra Santa; percorre, ainda, terras continentais como Lisboa e regiões de onde partiram povoadores para as ilhas. Também a Flandres está presente no romance, quer nos flamengos que vieram para o Faial, quer nos contactos comerciais estabelecidos com aquela região, por exemplo, com a exportação do pastel e da urzela; e até as relações dos Açores com o Oriente estão presentes. A narrativa transporta-nos para o mundo dos Açores nos séculos XV e XVI na globalização originada pelos Descobrimentos.
Apenas mais duas referências que mostram o realismo da estória. A primeira: o lugar da Igreja e seus ministros na vida quotidiana das gentes. Há falsos padres, os que se esquecem do voto de castidade, padres rigoristas que vêem pecados em cada ação humana e aqueles que sabem que as tentações são muitas - a carne é fraca, mas Deus é Misericórdia. Exemplo deste tipo de padre é o flamengo Hans que parece antecipar a ideia do Papa Francisco de que a Igreja é um “Hospital de Campanha” onde há lugar para “todos”. A religiosidade cristã que o autor apresenta, contudo, como ele próprio diz na “Nota Explicativa”, não é puritana, “focada no sofrimento e na penitência” (p. 396), mas “aberta à alegria que é intrínseca ao cristianismo, como eu o sinto”, diz (396-397). Tem toda a razão; numa expressão popular: “um santo triste é um triste santo”.
Outro dado que dá muito realismo à narrativa é o uso de terminologia e modos de dizer da época. Apenas três exemplos: no romance, as mulheres não engravidam, “emprenham”, não se está “cá”, mas “acá” e para dizer “vem depressa”, “vinde prestes!”.
O que acabo de dizer é um simples apontamento sobre um romance riquíssimo, quer em termos históricos quer literários. Do ponto de vista histórico, dá-nos uma vasta visão de uma época centrada nos Açores, nos séculos XV e XVI que, entre outras coisas, mostra como o mundo naquela altura estava muito mais interligado do que se poderia pensar. Literariamente, além de outros aspetos, há que reconhecer que a escrita do autor é excelente e que o desenrolar da ação é tão vivo que nos prende do princípio ao fim do livro.

José Henrique Silveira de Brito
Braga, novembro de 2023

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