Diário dos Açores

A Igreja de Nossa Senhora da Alegria, 122 anos de história

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«Na escuridão da noite, o templo de Nossa Senhora da Alegria, é uma jóia de luz entre o verde das árvores e a brancura da casaria», regista assim o Correio dos Açores de 24 de novembro de 1963.Assim começo esta minha pequena intervenção, onde vos vou elencar e apresentar um pouco da história da nossa Igreja paroquial.
Ora, recuando 122 anos, o tempo leva-nos a 1901, quando nos dias 8 e 9 de julho daquele ano, Suas Majestades o Rei D. Carlos e a Rainha D. Amélia visitam o vale das Furnas, integrado no percurso da visita régia aos Açores. No dia 9 de julho, uma terça-feira pelas quatro horas da tarde, suas majestades dirigiram-se ao local onde se iriam iniciar as obras da nova igreja das Furnas, acompanhados pelo Bispo de então, D. Francisco José Ribeiro de Vieira e Brito, 30º Bispo de Angra, para lançarem a primeira pedra do novo templo. O Diário dos Açores regista assim o evento: «Suas Majestades, inauguraram hoje os fundamentos de uma igreja paroquial nas Furnas, assistindo a esse ato, além da comitiva e autoridades, número considerável de povo, calculado em 3000 pessoas. O reverendíssimo Bispo de Angra celebrou as orações próprias e El-rei bateu a pedra».
Estavam então iniciadas as obras do novo templo, com todo o processo financeiro e administrativo resolvido, o cura, e depois primeiro pároco da paróquia criada em 1907, Padre José Jacinto Botelho, recebeu grande apoio do Marquês da Praia e Monforte, António Borges de Medeiros Dias da Câmara e Sousa, o qual compra o terreno e encarrega a um arquiteto francês o primeiro projeto, estando o original ainda guardado na posse da paróquia.
Decorriam as obras a bom vento, mas, com a instabilidade política na primeira da República em 1910 e a morte do Marquês da Praia e Monforte a 1 de maio de 1913, com a qual o financiamento e o apoio cessaram, ficou interrompida a obra do edifício, já com alguma forma, e a partir daí sem futuro garantido. O templo, meio construído, é cedido ao exército para quartel durante a II guerra mundial, recebendo um teto temporário para abrigar os militares da 3ª Companhia do Regimento de Infantaria nº18,entre 1940 e 1945. O imóvel só seria finalmente devolvido à posse da paróquia no dia 24 de janeiro desse ano.
Falecendo o pároco Padre José Jacinto Botelho em 1946, sucedeu-lhe o seu cura desde 1938, o Padre Afonso Carlos Arruda Quental, que ao tomar conhecimento do testamento da Condessa de Cuba, filha do Marquês da Praia e Monforte, onde esta deixava à Paróquia de Sant’Ana uma quantia avultada de 600 contos, ressuscitou então a vontade de concluir a empreitada interrompida da igreja nova. A comissão promotora, presidida pelo tão estimado sacerdote, reúne-se pela primeira vez a 10 de outubro de 1946. Logo se empenhou em concluir a empreitada do novo templo com um novo projeto, que aproveitava parte do que já existia, atribuído a João Filipe Vaz Martins de 10 de agosto de 1959, ficando para trás o primeiro projeto, e uma outra proposta, vingando uma igreja com «planta em cruz latina, composta por nave e capela-mor, mais baixa e estreita, flanqueada por corpos que conferem ao templo planta em T, integrando duas torres sineiras quadrangulares e tendo adossado em eixo à capela-mor sacristia retangular recortada». Possivelmente outras alterações e adaptações foram também realizadas devido ao clima de renovação que o Concílio Vaticano II imprimia na Igreja na década de sessenta. Destacam-se também neste processo o engenheiro Francisco Furtado da Ponte, José Vieira, António da Silva Cassiano e Nicolau Pereira, Manuel Ernesto Pimentel, António Tavares Oliveira, José Pacheco Elizardo e tantos outros que a história não registou. Por isso, honra seja eternamente devida ao homem que impulsionou e dinamizou a conclusão deste templo, e todos nós de certeza já ouvimos falar das inúmeras histórias atribuídas à pessoa do Padre Afonso durante o processo de construção, desde dinamizar os cortejos de Nossa Senhora da Alegria, à sua continua presença no estaleiro das obras, à promoção da oferta dos trabalhos do povo de dar um dia de trabalho na igreja, da história sobre a pedra única do altar que veio do Nordeste, enfim, e tantas outras que a memória, sobretudo dos nossos irmãos de mais idade recordam. De facto, todas estas pedras são espelho das pedras vivas que dentro delas se reúnem, uma casa feita por todos, e para todos. Numa espécie de diário do Padre Afonso, o qual a paróquia tem a posse, o sacerdote regista que a 2 de fevereiro de 1962 foi colocada a cruz em pedra no frontispício, registando o evento a 2 de fevereiro do ano seguinte, aquando da festa de Nossa Senhora da Alegria: «Hoje à tarde rezamos na Igreja Nova o Rosário da S.S. Virgem com grande concentração do povo. Faz hoje um ano que se colocou a cruz festivamente na fachada da Igreja Nova. Amanhã missas às horas do costume. Concentração na Igreja Nova, de todos os carros do cortejo, para que se coloque a imagem no carro-andor por cerca de uma hora. No regresso do cortejo, hão de ser arrematadas as ofertas. Confiemos em Nossa Senhora que nos dará bom tempo para a nossa festa». E a Virgem assim ajudou. No dia seguinte o padre Afonso escreveu: «Não quero que me faltem à missa por causa do cortejo. Desejava que fossemos todos pontuais. O andor ornamentado chegou a horas. É uma maravilha. Quero alegria e boa disposição em todos. O tempo está bom, mas mesmo que se tornasse mau, sei que ninguém arreda pé. Sempre para a frente. Depois das arrematações, Nossa Senhora virá em procissão de Triunfo para a nossa querida Igreja de Santa Ana.»  
Concluídas as obras de maior envergadura seria finalmente a 22 de novembro de 1963 a nova igreja inaugurada e aberta ao público, ainda não completa, mas onde já se podiam celebrar o culto e os sacramentos. O trabalho e o esforço de tantas pessoas ao longo de 62 anos deram frutos, e permanecem ainda hoje perpetuados nestas paredes. Destaca-se nesse dia a presença do Ministro das Obras Públicas, Engenheiro Eduardo Arantes e Oliveira, em visita à ilha de São Miguel: «O sr. Ministro Arantes e Oliveira ao apear-se encontra os braços agradecidos do vigário Arruda Quental, com os olhos marejados de lágrimas perante o membro do Governo que foi o grande impulsionador da grande obra, o seu melhor amigo, o coração compreensivo e cristão, a quem a freguesia de Sant’Ana fica a dever a realidade de mais uma Casa de Deus, para as necessidades espirituais de um povo disperso» escreve o Correio dos Açores. Estiveram presentes também o Governador do Distrito de Ponta Delgada Dr. Carlos Paiva, e o Monsenhor José Gomes, Ouvidor de Ponta Delgada e Reitor do Santuário da Esperança, delegado do Bispo de Angra para a cerimónia, pois este só viria às Furnas no ano seguinte para consagrar os altares da nova igreja. Juntamente com este ato solene realizou-se também uma procissão de transladação do Santíssimo Sacramento da igreja de Sant’Ana para a igreja nova, presidida pelo pároco Afonso Quental, e terminada a bênção da nova igreja, o canto do Te Deum de Lorenzo Perosi, seguido da leitura de uma bênção apostólica do Papa Paulo VI. O jornal Açoriano Oriental assim o regista: «Seguiu-se um Te-Deum de ação de graças, findo o qual o sr. Padre Afonso Quental leu uma bênção apostólica de Paulo VI, terminando por dizer que era um triunfo para a paróquia, honra para a Igreja e prestígio para a Nação.»
O novo templo foi pequeno para tão grande afluente de povo que acorreu à sua igreja nova, algumas fotografias patentes na exposição que hoje abrimos retratam isso mesmo. Nessas mesmas fotografias podemos observar que algumas das alfaias e paramentos utilizados nas cerimónias litúrgicas de abertura da igreja nova ainda existem, e as que podemos, expomos para que todos as possam ver.
«No ambiente dantesco do Vale das Furnas acaba de surgir um novo templo com capacidade suficiente de corresponder às exigências religiosas do cenário humano daquela freguesia. Apesar da cerimónia do lançamento da 1ª pedra haver sido realizada aquando da visita régia a esta ilha, no ano de 1901, só agora é que foi, finalmente, possível concretizar um longo sonho, embalado em esperanças e desilusões! … por isso, o rev. Sr. Padre Afonso Arruda Quental, com a alma a transbordar de felicidade, convidou, na última segunda-feira, a imprensa para um primeiro contacto com as linhas harmoniosas daquela tão suspirada Igreja, erguida sobre os alicerces da alma de um povo, que sabe amar e rezar com as contas do coração!», escreve o jornal Açoriano Oriental.
O Bispo de Angra, D. Manuel Afonso de Carvalho, desloca-se ao vale Formoso a 16 de fevereiro de 1964 para sagrar os cinco altares da nova igreja, inaugurada em novembro anterior. Sua Excelência Reverendíssima passeou também pela freguesia, saboreando a água azeda e contemplando a beleza do parque Terra Nostra na companhia do padre Afonso e de outros clérigos.
Aos poucos, o novo templo foi dotado do seu recheio, artístico e funcional, como os vitrais, feitos em Lisboa na oficina de José Alves Mendes, onde se salientam as cores dos vestidos dos três anjos que representam as três virtudes teologais (fé, esperança e caridade) não com as suas cores (branco, verde e vermelho), mas de roxo. Estávamos na Guerra Colonial, e a arte representou o sentimento do povo na época. O Cristo crucificado originário da Alemanha, a bancada, e finalmente as imagens dos santos da autoria do comendador José Ferreira Thedim, o mesmo escultor da imagem de Nossa Senhora de Fátima que está na capelinha das aparições, que chegam às Furnas após a sagração dos altares, sendo a imagem do Coração de Jesus a última, já em 1965. Todas elas esculpidas em São Mamede de Coronado, no continente, e representam pessoas de tamanho natural, com expressões fortes e grande realismo escultórico e fisionómico.

Os tempos passaram, e durante estes sessenta anos, registam-se outras obras e melhoramentos no templo, umas de maior visibilidade do que outras, realçando em 2007 a colocação dos azulejos do batistério, continuando em 2010 com a adaptação do presbitério para a celebração litúrgica segundo as normas emanadas pelo espírito do Concilio Vaticano II, inauguradas a 19 de março desse ano, colocando-se um novo altar para a celebração e um ambão, ambos em pedra. Também foi feito, nessa intervenção, o atual altar do Senhor dos Passos, aproveitando a pedra da antiga grade da comunhão que existia no presbitério. Depois disso intervencionaram-se também a armação da cobertura e o subtecto. Colocou-se também em julho de 2016 o carrilhão composto por 12 sinos, cumprindo-se assim um sonho que o Padre Afonso não conseguiu realizar quando concluiu as obras da Igreja. Também o chão, e agora o guarda-vento, que permaneciam inalterados, mas já afetados pelo tempo e pelo nosso clima tão característico foram renovados. Faltam apenas os bancos que também já requerem uma renovação.
Permitam-me terminar citando o soneto «Altar mor» de Oliveira San-Bento:
Os montes em redor – verde ondear
De altas vagas de mar e formosura –
Da nova igreja a mística ventura,
De mãos postas ao Céu, vêm impetrar …

Das ribeiras, nos parques a rezar,
Roga por ela a água, com ternura,
Até mesmo as «caldeiras», com doçura,
Olvidam seu rancor e estão a orar!

O lago, onde se vão mirar os céus,
Em êxtase a bendiz, louvando a Deus:
- A terra, em prece é templo que viceja …

Será seu altar-mor, donde o Senhor
Velará pelo lindo Vale em flor,
Florindo-o mais ainda, a nova igreja!

Furnas, 18 de novembro de 2023
Na sessão solene de comemoração do 60º aniversário
da Igreja de Nossa Senhora da Alegria
e na abertura da exposição temporária «Tempos de Fé»

Rui Soares

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