Diário dos Açores

O turismo de cruzeiros e o posicionamento estratégico dos Açores

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As notícias que, periodicamente, têm vindo a público acerca dos valores extraordinários de escalas de cruzeiros e volume de passageiros nos portos dos Açores correspondem a uma feliz consolidação de uma longa trajetória desenvolvida pela Região Autónoma dos Açores neste segmento, iniciada com a presença regular em feiras da especialidade por parte dos seus portos mais importantes, desde a década de 1990, e ainda com a construção do terminal de passageiros das Portas do Mar, em Ponta Delgada, inaugurado em junho de 2008.
Mais recentemente, o facto de o porto de Ponta Delgada ter sido o primeiro porto nacional a acolher navios de cruzeiro, ainda durante a fase pandémica por COVID-19, constituiu um importante marco, com repercussões muito positivas e diretas na forma como a indústria de cruzeiros, nomeadamente operadores e armadores, passaram a ver este arquipélago.
Adicionalmente, a inclusão do turismo de cruzeiros como uma das componentes da estratégia de turismo dos Açores, conforme consta do Plano Estratégico e de Marketing do Turismo dos Açores, eleva a expectativa quanto ao papel que esta atividade pode desempenhar no futuro para a Região Autónoma dos Açores.
Este conjunto de factos permite enquadrar a necessidade de definição de uma abordagem estratégica de longo prazo para este setor. Entretanto, os sinais quanto à capacidade de elaboração de tal estratégia por parte dos Açores são contraditórios. O caso da ecotaxa marítima, recentemente aprovada na Assembleia Legislativa Regional, constitui um exemplo de notória inconsistência neste contexto, a que se somam os cancelamentos pontuais em algumas das escalas agendadas, que penalizam a fiabilidade do destino Açores neste segmento de turismo.
No âmbito desta possível estratégia, coloca-se, por um lado, a questão das métricas quanto ao impacto da atividade, que deixaremos para outra oportunidade. Antes deste aspeto ligado aos impactos, deveremos identificar a trajetória pretendida. A este respeito, convirá perceber os tipos de posicionamento possíveis por parte dos portos nesta atividade.
Segundo a literatura, há a considerar três tipologias de portos: (1) os portos-base; (2) os portos de embarque/desembarque; e (3) os portos de escala. No primeiro tipo temos os casos dos portos nos quais as companhias de cruzeiros baseiam a sua atividade. Exemplos de portos com este posicionamento já consolidado são os portos de Miami e de Barcelona. Os portos de Las Palmas e de Santa Cruz de Tenerife são exemplos deste tipo no Atlântico Médio. No segundo caso temos múltiplos portos, sendo um possível exemplo o porto de Lisboa, que vem crescendo neste segmento, sobretudo através da companhia MSC, com oferta de cruzeiros com início em Lisboa. A última tipologia corresponde à generalidade dos portos, em que os navios de cruzeiros efetuam uma escala de cerca de seis a oito horas, proporcionando excursões aos passageiros no destino.
Conforme será facilmente percetível, os portos-base registarão um impacto económico na economia local muito superior aos restantes tipos de portos, sendo que os portos de escala serão aqueles em que se regista um menor impacto económico, em grande medida associado aos gastos dos passageiros na restauração, compras, visitas a museus ou excursões.
O posicionamento atual dos portos dos Açores cinge-se, em grande medida, nesta última tipologia, registando-se um número relativamente diminuto, mas em crescendo, de casos de início e final de operação, com embarque e desembarque de passageiros, sobretudo associados a itinerários entre as ilhas açorianas.
Neste contexto de posicionamento, os Açores optaram pela construção de dois terminais de passageiros (Ponta Delgada e Horta), sendo que o de Ponta Delgada apresenta-se como o mais importante. Não obstante a pertinência destas infraestruturas para o desenvolvimento do turismo de cruzeiros, revela-se indispensável a aposta noutras variáveis tão ou mais importantes.
A este respeito, seguindo a perspetiva de, por exemplo, Gui & Russo (2011)1 , será incontornável, por exemplo, uma abordagem de envolvimento das comunidades locais na dinamização da cadeia de valor do turismo de cruzeiro, com a participação de entidades públicas e privadas. O exemplo das ilhas de Cabo Verde neste setor, decorrente dos fracos recursos financeiros e a ausência de fundos europeus, focou-se num processo de agregação de interesses, incluindo artesãos, grupos musicais e performativos e outros elementos das comunidades locais, com contributos diretos na dinamização da oferta turística.No caso da ilha da Madeira, presenciei já a realização de feiras de artesanato no centro do Funchal em dia de escala de navios de cruzeiro.
Em suma, a existência de um conjunto de ligações articuladas entre agentes económicos e partes interessadas (stakeholders) poderá contribuir para a dinamização de uma imagem consistente do destino de turismo de cruzeiros. Sem esta agregação de esforços será impossível a criação de um verdadeiro destino de turismo de cruzeiros. O papel dos organismos oficiais, enquanto elementos catalisadores desta dinâmica de agregação de interesses e construção de uma imagem consistente de destino de turismo de cruzeiros é elemento indispensável. Nos Açores, com a aposta exclusiva no betão, financiado com fundos comunitários, foi dada primazia à construção de terminais portuários e esquecido, inadvertidamente, que uma parte não faz o todo.
Neste sentido, poder-se-á afirmar que a capitalização dos destinos de cruzeiros passa inevitavelmente pela agregação de esforços e compatibilização dos mais variados interesses na criação da oferta de um produto turístico. Só assim se poderá passar, por exemplo, de um porto de escala para um porto de embarque e desembarque, fazendo com que o destino se valorize e possa evoluir em termos de geração de valor.
Essa evolução em termos de geração de valor, de um porto de escala para um porto de embarque e desembarque, materializa-se, por exemplo, através do aumento do número de dormidas na hotelaria ou alojamento local, em resultado do facto dos passageiros do navio de cruzeiro poderem pernoitar no destino antes ou depois do cruzeiro propriamente dito, contribuindo diretamente para o aumento dos gastos no destino e para o aumento do número de turistas.
A este respeito, o caso de Barcelona, por exemplo, é verdadeiramente esclarecedor: o seu porto registou, em 2019, um volume total de passageiros em escalas de navios de cruzeiro da ordem dos três milhões, sendo 1,75 milhões em início ou final de cruzeiro e o volume remanescente de passageiros em escalas de trânsito. O significado deste número de passageiros em início ou final de cruzeiro é equivalente a um volume superior a 10 mil voos comerciais por ano e mais de três milhões de dormidas em estabelecimentos hoteleiros naquela cidade.
Ou seja, o facto de um porto se posicionar como ponto de embarque e desembarque de passageiros e, sobretudo, como ponto de início e final de um cruzeiro, constitui um forte elemento dinamizador da atividade turística da cidade, para além de incrementar a atratividade do seu aeroporto, com reflexo no número de ligações, destinos e, ainda, do número de companhias aéreas com atividade no aeroporto desse destino.
Esta perspetiva retorna-nos à ideia principal: para atingir este nível de desenvolvimento é necessário mais, muito mais do que puro acaso, sorte e betão. É sobretudo necessário atuar nos momentos certos, chamando e ouvindo as pessoas certas, agregando as partes interessadas e as comunidades locais, numa articulação de componentes que proporcionem a valorização do produto turístico e a experiência do visitante, permitindo ainda a conversão do passageiro do cruzeiro em turista. O que nos leva à teoria do stakeholder, que é uma área de conhecimento que deveria ser mais estudada nos Açores. Mas esse assunto ficará para depois.

 1Gui, L. e Russo, A.P. (2011). Cruise ports: a strategic nexus between regions and global lines-evidence from the Mediterranean. Maritime Policy & Management, 38(2), 129-150

Luís Machado da Luz*
*Doutorado em Sistemas de Transporte pela Universidade de Coimbra, ao abrigo do Programa MIT Portugal

 

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