É possível enumerar as vezes que uma vítima de violência conta a sua história, para poder usufruir dos seus direitos. Opto por não fazê-lo aqui.
A experiência de recordar um episódio marcante, arrasta consigo uma cauda de efeitos colaterais: o ter de lidar com sentimentos de culpa; vislumbrar imagens que lhe invadem a mente de forma assustadora; sentir o corpo vibrar e olhar sob o ombro, como se o perigo fosse iminente; sentir dor, medo, pavor, terror; achar que não vai conseguir contar a história da forma certa (como se houvesse uma), pensar que não vão acreditar em si, mas sim na pessoa agressora; a fadiga, o cansaço até à exaustão emocional; sentir vontade de desistir de tudo, de querer que uma borracha mágica apague o passado, para, a partir do agora, construir o que está porvir.
Felizmente, na nossa comunidade, as entidades que trabalham com a problemática da violência doméstica têm cada vez maior sensibilidade para este tema e há uma preocupação efetiva em ouvir a vítima o mínimo de vezes. Mas não deixa de ser uma, duas, três e tantas outras vezes.
A violência doméstica não acontece longe de si. Pode estar na casa ao lado, ou na sua… e não é disfarçada. É violência. Se o que lhe disseram vai denegrir, humilhar, insultar, difamar, menosprezar alguém, então é violência. Se alguém a faz sentir que todas são lindas menos você, que todas são perfeitas menos você, que tudo o que acontece de mal é culpa sua, se a controlam ou perseguem, então é violência. Se só uma destas situações acontecem, é violência também. É crime.
A força necessária para sair de uma situação opressora depende da vontade da pessoa oprimida, mas também de quem pode estar à sua volta e não a critica, não a julga e a faz acreditar que é possível procurar alternativas. Toda a comunidade pode fazer a sua parte: dar suporte; compreender que não é fácil romper uma relação abusiva; dar o nº de telefone de uma instituição que trabalha com vítimas de violência doméstica; chamar a polícia.
O nosso tributo a cada mulher que conseguiu contar a sua história uma, duas, três e tantas outras vezes. Que acreditou que é possível viver sem se sentir aprisionada, e que é possível sentir que tem o direito:
- a ser ela própria.
- de colocar-se em primeiro lugar.
- de estar em segurança.
- de ser tratada com respeito.
- de amar e ser amada.
- a não ser perfeita em tudo.
- de se sentir revoltada e protestar quando tratada injustamente ou abusivamente por qualquer outra pessoa.
- à sua própria privacidade.
- de ter as suas opiniões, expressá-las e ser levada a sério.
- de ganhar e controlar o seu próprio dinheiro.
- de colocar questões sobre tudo o que afeta a sua vida.
- de tomar decisões sobre assuntos que lhe dizem respeito.
- de crescer, de se desenvolver e mudar.
- de dizer NÃO!
- de cometer erros.
- de não se responsabilizar pelos problemas dos outros.
- de controlar a sua própria vida e de a mudar, se não estiver satisfeita com ela, uma, duas, três vezes e quantas lhe apetecer.
Sandra Furtado *
*Socióloga
Centro de Apoio à Mulher de Ponta Delgada
Campanha 16 Dias pelo Fim da Violência contra as Mulheres 2023