“As influências açorianas estão profundamente presentes na minha obra”
Diário dos Açores

“As influências açorianas estão profundamente presentes na minha obra”

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Escritora Katherine Vaz ao Diário dos Açores

Acaba de lançar mais um romance, “Above the Salt”, que promete ser mais um sucesso, a julgar pela escolha da People Magazine, como livro da semana. Nesta obra volta a recorrer às suas memórias para abordar temas da imigração?
Sim. Foi muito bom ter recebido tão significativo voto de confiança da People Magazine pela seleção de Above the Salt (Flatiron Books/ Macmillan) como Livro da Semana.
A famosa revista conta com mais de oito milhões de leitores e, portanto, é uma oportunidade que garante a visibilidade do livro.
Trata-se, de facto, da celebração de uma história pouco conhecida da imigração, fazendo parte do meu esforço em divulgar histórias portuguesas, trazendo-as para a primeira linha da literatura americana.
Tem havido este esforço conjunto com a minha editora de forma a chamar a atenção de dezenas de grupos de leitura, influenciadores do Instagram e muitos outros espaços para este efeito. Ainda ontem, o programa “Good Morning America” anunciou-o como um dos livros que figuram no top de Novembro.
Recebi muitas mensagens maravilhosas de leitores, e isto é o mais gratificante.
A história dos protestantes portugueses que vieram para Illinois em meados do século XIX é uma história que relembra à América as suas origens, aceitando pessoas, com graves necessidades, vindas de todas as partes do globo, com uma grande generosidade.
Este é um dos principais temas, sim, é também sobre a resistência do amor, as complicações de encontrar um lar, as decisões que se dividiam entre a lealdade ao próprio coração e a lealdade à causa de um país.
Foi um tempo de profunda criatividade, da descoberta do ouro, de um jovem país acolhedor. Estou extremamente feliz por esta história tão portuguesa estar a ser tão bem recebida... trabalhei muitos anos a enriquecer as personagens e a torná-las adequadas à história.
Muitos leitores afirmaram que a obra era muito poética, mas também estimulante ao nível do enredo.
Esta foi a recompensa pelo resultado de um trabalho árduo de muitos anos.

O Michael Rezendes diz que a Katherine exprime “de forma única o anseio incipiente da alma portuguesa”. O passado da sua família, oriunda dos Açores, tem influência na sua inspiração e na sua escrita?
Sim, as raízes da família do lado do meu pai são açorianas, com origem na ilha Terceira.
O meu pai era August Mark Vaz e nasceu no Norte da Califórnia, mas a sua mãe morreu pouco depois e o meu avô (e também a sua mãe) levaram o meu pai para a ilha para o criarem. Então, a língua materna do meu pai era o português. Ele regressou à Califórnia, ainda frequentava a escola, quando o meu avô casou novamente.
O mérito de ser escritora deve-se também à minha mãe, Elizabeth Sullivan Vaz, que era irlandesa, mas nascida em Nova Iorque.
Ela mudou- se para a Califórnia, ainda era jovem, e ali conheceu o meu pai. O seu amor pelos livros e pela arte teve uma enorme influência em mim.
O Mike Rezendes é um amigo maravilhoso, um escritor conterrâneo, admiro imenso a sua obra e coragem. Penso que nós, que temos origens portuguesas, partilhamos um profundo entendimento do que é a “saudade” e uma inefável tristeza, que é também uma bonita e intensa forma de ver o mundo, uma facilidade em sentir a natureza efémera daquilo ou de quem amamos.
O Mike é muito generoso ao dizer que sou capaz de expressar este sentimento na minha escrita.

Segundo a crítica, neste novo livro aborda o “poder duradouro do amor”. É, também, uma inspiração na família e nas dificuldades da imigração, em que o amor supera tudo?
Não sei se é verdade que “o amor conquista tudo”... Penso que todos temos consciência de que o mundo pode destruir o amor, ou melhor dito, as pessoas ganharam medo ao amor, consciente ou inconscientemente, elas podem procurar destruí-lo ou contrariá-lo, seja por medo, ciúme, ou porque pressentem que o seu poder é perigoso.
Quando encontrei a história de John Alves, o meu protagonista, fiquei maravilhada - contada num jornal quando ele era idoso, numa visita de regresso ao monumento a Lincoln - a sua mão a tremer quando recordava o amor que tinha por “Mary”, a quem, naquele lugar, fez a corte.
Aquilo impressionou-me: a longevidade e a força do seu amor. As dificuldades da emigração contribuíram para tal? Na minha própria família, da geração do meu pai, houve sempre um grande ímpeto para criar um verdadeiro lar, um lugar no mundo.
 Penso que isto influencia o carácter das minhas personagens em busca de reclamar um lugar no mundo. No seu caso, como convertidos, orientados por um sacerdote escocês, tiveram um bom começo ao aprender inglês.

O seu primeiro romance, “Saudade”, já abordava estas questões, embora de forma diferente. O sucesso da obra levou-a a reflectir mais sobre estes assuntos?
Os meus livros, a começar pelo “Saudade”, já há quase duas décadas, abarcam uma visão do mundo altamente sensorial.
Considero que as influências açorianas estão profundamente presentes... nos sabores, nas visões, nos cheiros, nas sensações auditivas, nas comidas, paisagens verdejantes, no mar, no peixe, nas cores, nos azulejos - vejam como são decorativos os azulejos!
 No meu primeiro livro, para mim, sente-se esta inundação e mistura de sentidos, espero. É o ponto de vista de alguém sem medo de existir com toda esta percepção de sensações do mundo. Isto está presente em  “Above the Salt”, embora não com tanta intensidade ou predominância.
Da mesma forma, a celebração das histórias dos portugueses que vieram para a América, sendo uma linha de força em “Saudade”, tem também continuidade na mais recente obra.

Disse, uma vez, numa entrevista a um jornal de Lisboa, que estava a trabalhar há doze anos num romance. É o “Above the Salt”?
 Esqueço-me de ter dito a um jornal de Lisboa que estava a trabalhar há doze anos num livro... Sim, definitivamente, era o “Above the Salt”, e já perdi a conta aos anos envolvidos, talvez dezasseis!
Trabalhei com muitos editores freelancers, um ano com o meu agente, depois outro ano inteiro com a minha admirável editora, Megan Lynch, da Flatiron, para apurar a história e dar a pedra de toque do entusiasmo que mantém os leitores a virarem as páginas.
A resposta mais gratificante para mim até agora, tem sido, como já referi, a dos leitores que me dizem que o enredo é excelente. Trabalhei muito e encontrei pessoas talentosas que me orientaram. Todos esses anos de trabalho extraordinário valeram a pena.

Gostaria de ver o livro traduzido em Portugal?
“Above the Salt” foi já vendido a uma editora portuguesa!
 Carmen Serrano, da Asa, sob a alçada das Publicações Leya, em Portugal.
A Asa, como editora independente, já tinha publicado três das minhas obras e irá reeditar “Mariana”, o meu segundo romance, em janeiro de 2024.
Julgo que “Above the Salt” sairá a seguir e já está totalmente traduzido pela excelente Tânia Ganho, ela própria uma grande escritora, que traduz muitos autores americanos populares, incluindo Tayari Jones, Amor Towles, etc.
Recentemente, ao visitar Lisboa, a Tânia e eu falámos sobre o texto e já está concluído.
O livro será publicado em junho de 2024, disponível nos países de língua portuguesa (fora do Brasil).
O título será um pouco diferente.

Tem seguido a vida literária em Portugal e nos Açores? Tem muitos amigos e admiradores desta área da literatura em Portugal. O que lê de autores portugueses?
Como americana de ascendência portuguesa, faço questão de fazer uma leitura de um romance português todos os dias.
Acabei de ler o último livro de Susana Moreira Marques, “Lenços Pretos, Chapéus de Palha e Brincos de Ouro”, Apnea, de Tânia Ganho, “O Regresso de Júlia Mann a Paraty”, de Teolinda Gersão, o brilhante “Jénifer”, de Joel Neto, e adoro a obra de Gonçalo Tavares. Fiz uma vez uma leitura com ele na FLAD, em Lisboa.
Quero apoiar os autores portugueses o melhor possível.
O The Disquiet International Literary Program, que lecciono todos os Verões, traz sempre escritores portugueses que se juntam a autores americanos.
 Um dos meus momentos favoritos foi quando Maria Teresa Horta, uma das minhas heroínas, reviu o meu livro “Mariana” e chamou-me “a nossa prima americana”. Foi muito emocionante. A sua poesia e escrita inspiram-me tal como a sua vida.

Quando volta aos Açores? Gosta de mergulhar nas raízes da terra dos seus pais?
 Espero voltar aos Açores a propósito da publicação de “Above the Salt”! Talvez no próximo Verão.
 Adoro encontrar-me com os vibrantes jovens escritores açorianos, e gosto da sensação de estar no lugar onde tanto da minha inspiração ainda permanece.

jornal@diariodosacores.pt

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