Diário dos Açores

Os Dilemas do Profissional da Comunicação

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Como toda a atividade humano, a comunicação social está sujeita à crítica; criticam-se, por exemplo, os chamados critérios jornalísticos.
Um dia, em conversa com um jornalista, meu colega professor na licenciatura em Comunicação Social da minha Faculdade, perguntei-lhe: “uma vez que não se podem publicar todas as notícias que aparecem, que critérios de seleção utilizar?” Ele respondeu: “o critério é o valor-notícia”. Surpreendido, retorqui: “o que é isso?” Ele comentou: “a resposta clássica à sua pergunta é a que lhe dei; embora o seu conteúdo concreto seja difícil de definir”.
Para clarificar a questão, um exemplo. Há uns anos, os três canais de TV generalistas de Portugal, a RTP1, a SIC e a TVI, abriram os noticiários do horário nobre com uma reportagem sobre uma conferência de imprensa dada por uma socialite muito conhecida no país. Em cada canal a reportagem durou uns bons 15 minutos. No fim do mesmo telejornal, uma das estações ouviu o presidente do Conselho Nacional das Ciências da Vida sobre um problema bem complexo de bioética na altura muito discutido no país. O jornalista formulou a pergunta e lembrou ao entrevistado: “estamos na televisão: tem um minuto para a resposta”. Reparem: no mesmo telejornal, uma reportagem a propósito de um peeling feito por uma senhora numa clínica em Madrid, Espanha, durou um quarto de hora e a resposta a uma questão complexa de bioética teve direito apenas a um minuto.
Esta minha comunicação, contudo, não enveredará pelas críticas à comunicação social, mas abordará problemas com que se confrontamos seus profissionais, concretamente os jornalistas.
Abordarei três problemáticas. A primeira tem a ver com o papel mediador dos profissionais da comunicação. A segunda abordará a questão da independência dos órgãos de comunicação, e, na terceira, discutirei a problemática do pluralismo cultural das nossas sociedades.

1. Problemática da mediação.
O jornalista recolhe informação e transmite-a aos que a procuram. Exemplo: para escrever um texto sobre as vacinas da Covid-19, consulta um virologista. Embora simplificando, o virologista falará sempre como cientista. O jornalista, embora bem preparado, ouvirá sempre o entrevistado, mas condicionado pela sua reduzida formação na área das ciências. Os leitores ou ouvintes do trabalho do jornalista, ainda vão estar mais longe do primeiro discurso: o do cientista. Temos a vacina em três mundos – o do cientista, o do jornalista e o do ouvinte/leitor – que não coincidem totalmente. Esta função de mediação do jornalista, absolutamente necessária, exige uma atenção especial do profissional e traz-lhe dificuldades. Ele sabe que nunca estará na posse da verdade, que pode sempre interpretar mal e ser mal interpretado. Vejam as exigências éticas com que o profissional da comunicação se confronta. Imaginem os problemas que se colocam no trabalho de reportagem, no noticiário político ou económico, etc.
Hoje fala-se muito em Fake News e, de facto, publica-se muita mentira. Mas, tendo em conta que cada um vê a realidade a partir do seu ponto de vista, a mesma realidade vista por duas pessoas dá origem a perceções diferentes. Costumo dizer que conhecer é interpretar e a história de cada um de nós é decisiva para essa perceção da realidade. Quem viveu uma guerra ou, teve um grande acidente de viação, fica marcado para o resto da vida; as palavras “guerra” e “acidente” têm para ele uma vibração, uma ressonância muito especial.
Para complicar o que acabo de dizer, pensem na velocidade própria do mundo da comunicação. Nem sempre há tempo para o jornalista seguir escrupulosamente os protocolos exigidos pelas boas práticas. A pressa coloca muitas vezes o profissional entre a espada e a parede: ou procura confirmar e perde a oportunidade, ou aposta e as coisas podem correr mal. Ainda recentemente, num jornal português de referência, um conhecido jornalista dizia que Pedro da Silveira, poeta florentino e oposicionista ao Estado Novo, tinha sido informador da Pide. O jornalista e o jornal vieram depois lamentar o erro e pedir desculpa, mas o mal estava feito.

2. O Problema da propriedade e independência da comunicação social e o seu financiamento.
A sustentabilidade económica da comunicação social e a sua independência sempre foram questões complicadas: produzir informação custa dinheiro. Hoje os órgãos da comunicação são estatais ou são empresas ou ligados a grupos empresariais. Os que são estatais são financiados na totalidade ou em parte substancial pelo orçamente geral do estado. Os privados têm como fonte de receitas a publicidade, os patrocínios, a produção de eventos, etc. Para isso a fixação de audiências é de enorme importância.
Como é que se leva alguém a comprar um jornal, a ouvir uma rádio ou a ligar para determinado canal de TV? Por exemplo, procurando apresentar produtos chamativos. Essa preocupação reflete-se, naturalmente, no trabalho dos jornalistas. Ou seja, na gíria jornalística: há que procurar “furos”. A este propósito, lembro-me desta estória já com alguns anos. Um colega meu foi a uma cerimónia onde encontrou em trabalho de reportagem uma antiga aluna. Quando, no fim do evento, se despediram, ele perguntou-lhe: “o que é que vai fazer agora?” Resposta: “vou à procura de alguma coisa que abra o telejornal das 8 horas”. Ela estava no início de carreira e sabia bem que os “furos” são importantes para o currículo.
A necessidade de estar atento à sustentabilidade económica pode colocar o profissional em contextos difíceis de gerir. Os tabloides vendem, mas será aceitável o jornalismo que praticam? As receitas da publicidade não poderão condicionar os órgãos de comunicação que têm aí uma fonte importante de financiamento?
Nas minhas aulas sobre a independência dos órgãos de comunicação, vinha sempre à baila a questão da sua propriedade. No debate inicial, uns alunos defendiam que os órgãos de comunicação deveriam ser estatais, para serem independentes do capital; outros, que não deveriam ser do Estado para serem independentes do poder político. Depois de os alunos discutirem durante algum tempo, eu lembrava-lhes o ditado popular: “quem paga, manda!” e dava exemplos: “se o órgão de comunicação é estatal, o governo que está de turno tentará influenciar a informação. Se o jornal, rádio ou canal de televisão, está ligado a um grupo económico, será esse a tentar influenciar”. Em Portugal, há 40, 30 anos, antes do aparecimento das televisões privadas, ficaram célebres os telefonemas de membros de governo, incluindo o Primeiro Ministro, a tentar influenciar o alinhamento dos telejornais da RTP. No que respeita às empresas de comunicação social privada, a independência dá muito trabalho. Todos conhecem estórias elucidativas.
Sem negar nada do que disse até agora, há casos de independência notáveis. Em Portugal há um bom exemplo: o jornal Público,  ligado ao grupo empresarial Sonae. O grupo dá liberdade total ao jornal. Várias vezes o fundador do grupo, o Engenheiro Belmiro de Azevedo, participou em atividades da Faculdade onde ensinei. Verificámos que esses acontecimentos nunca eram noticiados pelo Público. Mais tarde tive conhecimento de que era uma regra do jornal para vincar a sua independência.

3. A problemática do pluralismo cultural.
Vamos às questões do pluralismo. No passado as sociedades eram culturalmente homogéneas, mas hoje vivemos em sociedades multiculturais. Se olharmos com atenção para o mundo que nos rodeia, por exemplo o Canadá, constatamos que, neste espaço político, convivem diversas comunidades distintas do ponto de vista cultural. Dentro desta diversidade, há um conjunto de valores interculturais que todos os canadianos e residentes no Canadá partilham; é o que os especialistas chamam uma moral de mínimos, que se consubstancia no “Direitos Humanos” e permite a convivência das diversas comunidades em presença.
Para além desse conjunto partilhado por todos, há um outro conjunto, que não se opõe aos da moral de mínimos, e que, vividos por cada uma dessas comunidades, as distingue, dando-lhe a sua individualidade.
Na sua atividade, o profissional da comunicação não pode deixar de ter em conta esse pluralismo e a sua historicidade. Na seleção das notícias, na elaboração de reportagens, no comentário ou avaliação dos acontecimentos, o jornalista não pode deixar de ter em conta esse pluralismo da moral.
O pluralismo de uma sociedade como a nossa é uma riqueza cultural a defender, mas pode colocar problemas muito complexos aos profissionais da comunicação. A liberdade de expressão, valor fundamental para o desempenho do trabalho do jornalista, será irrestrita? Não terá limites? A resposta que se dá muitas vezes a esta pergunta é que o jornalista deve usar “o bom senso”. Mas alguém será capaz de dizer o que é o bom senso? O que se pode dizer é que cada um tem o seu. Há quem recorra a metodologias elaboradas por peritos em questões ético-morais, mas seja qual for o caminho escolhido pelo profissional para decidir o que fazer, em última instância vai ser a sua consciência moral a decidir; isto é, a sua educação. E chegados aqui, é, bom lembrar o seguinte: ninguém fica por educar, mas até hoje ninguém foi capaz de explicar de um modo satisfatório como é que se educa.
Creio ter exposto o que pretendia nesta comunicação: a crítica à comunicação social é normal, saudável e até necessária, mas ao fazê-la não podemos esquecer o contexto complexo em que o jornalista trabalha.


José Henrique Silveira de Brito

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