Diário dos Açores

Não votar em defesa da Calheta

Previous Article Unanimidade?
Next Article Os Dilemas do Profissional da Comunicação

Nunca o fiz, mas vou fazer agora. É um esclarecimento que se impõe, para o presente e para a História. O chamado Movimento de Cidadãos “Queremos a Calheta de Volta” nunca existiu oficialmente ou formalmente. Foi apenas um conjunto de boas intenções e boas vontades, sem dúvida, mas não passou disso.
Nunca teve registo oficial, nunca teve estatutos, nunca teve um programa de objetivos aprovado pelos seus membros, nunca houve uma assembleia geral e nunca existiu uma direção eleita. Sem uma orgânica legal e bem definida, esse Movimento de Cidadãos não teve força alguma, pelo que não conseguiu nada de positivo para a Calheta de Pêro de Teive. Não prejudicou ninguém, obviamente, mas também não beneficiou a causa da Calheta. Nem uma manifestação na Calheta foi organizada e promovida, contra interesses que não servem a população. Já nem falo numa providência cautelar no Tribunal de Ponta Delgada contra decisões absurdas e arbitrárias do Governo Regional e da Câmara Municipal.
A prova mais evidente de que esse Movimento de Cidadãos nunca teve existência formal foi a sua extinção decidida, tanto quanto percebi, por uma única pessoa, um cidadão muito prestante, mas que ingenuamente acreditou em falsas promessas de governantes e autarcas. O resultado está bem à vista de todos...
Apesar de não ter tido existência legal, representantes desse Movimento de Cidadãos foram recebidos quer pelo Governo Regional dos Açores, quer pela Câmara Municipal de Ponta Delgada, há uns tempos atrás. Foram reuniões só para “açoriano ver”... Após cumprimentos, abraços e sorrisos, as pretensões expostas foram colocadas no fundo do caixote do lixo pelos governantes e autarcas.
Vêm aí novas eleições legislativas regionais. Como de costume, a grave questão da Calheta voltará às agendas partidárias, mas, como sempre aconteceu, só para renovadas promessas, para não dizer renovadas mentiras. E se a população de Ponta Delgada se recusasse a votar em protesto contra a situação da Calheta? Esse é que seria um grande “Movimento de Cidadãos” contra a hipocrisia, a mentira e a desonestidade que sempre caracterizaram a questão da Calheta.
A solução é só uma: reverter a concessão a um privado do espaço público da Calheta conquistado ao mar, acabar com a ideia absurda de construir ali um enorme hotel que não faz falta alguma e criar uma ampla zona de fruição pública, que pode ser, nomeadamente, uma bonita praça ou um atraente espaço verde. A empresa concessionária do espaço público da Calheta, que anda só a “fazer de conta”, deveria respeitar mais as legítimas instituições regionais e deveria respeitar mais, também, o povo bom e sério da terra açoriana. Que essa empresa se retire ou seja retirada da Calheta é mais do que uma necessidade: é uma urgência e é um imperativo, em nome dos grandes valores açorianos. Não digo que essa empresa seja desonesta, não é com certeza. Mas que tem sido pouco colaborante, tem sido. Estranhamente! É uma verdade óbvia e indesmentível. Ficamos todos a perder com isso, a começar pela própria empresa.
O jornalista Gustavo Moura disse uma vez que o igualmente jornalista e também escritor Manuel Ferreira, seu mestre, lhe ensinou a amar e a defender os grandes valores açorianos, todos eles, da Cultura à Natureza, passando pela Economia. Que grande e bonita homenagem Gustavo Moura prestou - muito justamente, de resto - a Manuel Ferreira. Conheci pessoalmente os dois, embora nunca tenha trabalhado como jornalista com eles. Aproveito esta oportunidade para prestar uma modesta mas sincera homenagem às suas memórias. Gustavo Moura foi pai de um grande amigo meu de infância e Manuel Ferreira era cunhado do meu tio Luciano de Resende Mota Vieira.
O que eu quero dizer é que está mais do que na hora de os açorianos - todos os açorianos, independentemente de origens sociais ou profissionais e de opções ideológicas - se unirem na defesa a sério dos grandes valores açorianos. Para começar, que se constitua uma “frente” cívica em defesa da Calheta de Pêro de Teive, que é nossa, muito nossa, contra interesses que nos “esmagam” com os seus muitos milhões. Modestamente, mas aqui fica o alerta e o aviso: os grandes valores açorianos não são vendáveis e não estão à venda. Quem quiser “brincar” com a nossa terra e com o nosso povo que vá para outro lado e depressa!
Espero que o PS e o PSD, que são os principais responsáveis pela situação a que chegou a Calheta de Pêro de Teive, tenham vergonha na cara e se comprometam que se chegarem ao Governo Regional vão acabar, de uma vez por todas, com o “faz de conta” naquele espaço público concessionado a um privado. O PS e o PSD têm uma excelente oportunidade para mostrarem que amam e defendem a sério os grandes valores açorianos, o que nem sempre tem acontecido. Gustavo Moura e Manuel Ferreira já não estão cá para lhes ensinarem, mas deixaram-nos o seu valioso exemplo e o seu prestante contributo, concordando-se ou não com as suas posições públicas. No entanto, o PS e o PSD podem muito bem fazer um exercício de reflexão e reconhecerem os erros cometidos ou patrocinados na Calheta, direta ou indiretamente, por ação ou inação, com vista a dar a dignidade e a beleza que aquela zona da cidade de Ponta Delgada tanto carece. Já era para ontem!
Em tempo de eleições, não há que ter receio de falar “português”, como se costuma dizer, embora eu não vá entrar na campanha, mas tenho direito a falar como açoriano e como cidadão que ama esta terra. O líder do PS-Açores, Vasco Cordeiro, já foi presidente do Governo Regional e não conseguiu resolver o problema da Calheta, antes agravou ao aprovar um projeto de chamada requalificação daquele espaço que permite ao concessionário construir um enorme hotel. E a Calheta continua num caos urbanístico e ambiental! O chefe do PSD-Açores, José Manuel Bolieiro, é ainda presidente do Governo Regional e nada fez pela Calheta. Apesar de muito crítico da ação governativa socialista anterior, não reverteu, como devia, o dito projeto de requalificação. De resto, concordou ou não se opôs ainda quando era presidente da Câmara Municipal de Ponta Delgada. É de recordar, de resto, que José Manuel Bolieiro na campanha eleitoral para presidente da Câmara Municipal prometeu de peito aberto que iria enviar uma queixa para a Comissão Europeia sobre a situação da Calheta e depois de eleito não cumpriu essa promessa, que fazia todo o sentido. Os nossos amigos brasileiros dizem sobre situações semelhantes, com a graça que lhes é inerente: “Político não tem palavra, não precisa ter palavra”. Pois! Que desilusão! Certamente que José Manuel Bolieiro percebeu depois ou foi alertado de que uma eventual fiscalização ou intervenção da Comissão Europeia poderia embaraçar ou responsabilizar também elementos do PSD... Claro! E a Calheta continua num caos urbanístico e ambiental!
Se os políticos regionais Vasco Cordeiro e José Manuel Bolieiro não dão garantias de solucionar a questão da Calheta, como já se viu, não estão nas melhores condições para regressarem ao cargo de presidente do Governo da Região Autónoma dos Açores. Até parece, como já tenho ouvido, que têm medo da empresa concessionária da Calheta. A ser verdade, não compreendo a razão. Para que querem voltar a ser presidente do Governo Regional? Para ficar tudo outra vez na “mesma como a lesma” quanto à Calheta? Quem não consegue ou não sabe resolver o problema da Calheta também não consegue ou não sabe resolver qualquer outro problema existente no arquipélago. Se calhar, é por isso que existem tantos problemas por resolver nas nossas ilhas.  
Neste momento não posso esquecer, aliás já o mencionei, o meu saudoso tio e padrinho Luciano de Resende Mota Vieira, professor, historiador e jornalista. Ele defendeu e amou sempre a Calheta. Lutou logo de início contra a destruição do portinho de pesca e da enseada da Calheta. Ninguém do poder o ouviu. Durante toda a sua vida, ele deu também um notável exemplo de amor e de entrega aos grandes valores açorianos, exemplo que importa, pois, realçar e seguir.
Não tenho a pretensão de ser porta-voz de ninguém ou de me fazer representante de quem quer que seja. De qualquer modo, por uma questão de justa memória, tenho que recordar aqui, também com muita emoção, os muitos moradores que conheci na velha Calheta, quase todos pescadores, alguns dos quais foram meus colegas na Instrução Primária, na Escola da Mãe de Deus. Sei como eles amaram a Calheta, defenderam a Calheta e trabalharam arduamente na pesca a partir do portinho então ali existente, no ganha-pão de cada dia para eles e para as suas famílias. Pessoas muito trabalhadoras, muito honradas e muito sérias! Muito trabalharam mas pouco ganharam, muitos possuíam fracos recursos e viviam em habitações modestas, para agora a Calheta que eles tanto amaram ser palco de negócios de milhões. Passa-fora! A memória dos antigos moradores da Calheta, quase todos já falecidos pois, deveria merecer respeito - muito respeito! - de todos nós, a começar por governantes, autarcas e empresários, o que raramente  tem acontecido. Esses antigos moradores da Calheta, à sua maneira, também amaram e defenderam os grandes valores açorianos, precisamente porque amaram e defenderam a terra em que nasceram, viveram e trabalharam.
Não sou um apoiante da causa da independência dos Açores, que muito respeito, no entanto. Tenho amigos e familiares que consideram que os Açores independentes estariam numa melhor situação. A Frente de Libertação dos Açores (FLA) , que dizem que ainda existe e que sempre se reclamou de defensora dos grandes valores açorianos, nunca se pronunciou, que eu saiba, sobre a grave situação da Calheta. Venham daí e juntem-se de viva voz e com ação aos defensores da Calheta. “Todos, todos e todos”, para usar a feliz expressão do Papa Francisco, não somos demais para exigir o fim do caos urbanístico e ambiental que existe na Calheta quase há duas décadas. Um “6 de Junho” em defesa da Calheta vinha mesmo a calhar...


Tomás Quental Mota Vieira

Share

Print

Theme picker