‘’Tratem da fama e do comer
que amanhã é dos loucos de hoje!’’
Álvaro de Campos «Gazetilha»
Liberto Cruz, que usou o pseudónimo de Álvaro Neto, nascido em Sintra em 1935, poeta, crítico, ensaísta, autor dos Cadernos de Poesia Experimental, publicados em 1964, colaborador do Jornal Letras e Artes,1 que tinha como director Azevedo Martins, em 25 de Maio de 1966, ano em que Natália Correia lançou o seu livro O VINHO E A LIRA, numa longa e elogiosa crítica sobre o mesmo, a certa altura diz que a poeta é ‘’ apontada muitas vezes como surrealista e que ela própria teve oportunidade, não há muito tempo, de escrever as seguintes palavras:
‘’Frequentemente arrumada pela crítica no cacifo surrealista, tem a autora a esclarecer que, se semelhante arrumo quadra à comodidade dos nossos fazedores de génios, de forma alguma define a sua poesia’’.
Arguta, frontal e decisiva, Natália não deixa que a enquadrem num género e numa ordem na qual alguns críticos a querem situar. Ela é muito mais que um género, ela possui a centelha dos escolhidos para salvarem com as suas palavras o cerne do coração humano.
Sublinha Liberto Cruz ‘’Com efeito o volume agora publicado por Natália Correia leva-nos a concluir que estamos perante um poeta para quem a realidade assume uma importância que até aqui passava despercebida aos menos atentos’’.
No último parágrafo da apreciação de O Vinho e a Lira, o ensaísta conclui que ‘’publicando o seu melhor livro de poesia, pela maturidade do Verbo, a expressividade dos versos, a beleza e a ousadia da forma e da temática – sempre tão indisciplinadamente certos – Natália Correia obtém na poesia portuguesa, e nomeadamente na feminina, um lugar de relevo cuja modernidade tem o sabor clássico das coisas antigas e a loucura inquietante das vindouras’’.
No entanto, no mesmo Jornal Letras e Artes, a 22 de Junho de 1966, Ano V, n.º 245, nas páginas coligidas por E. M. de Melo e Castro, este escreve e ‘’aponta exemplos do Orfeu e do Surrealismo português’’. Juntamente com Mario Cesariny de Vasconcelos, Almada Negreiros, Ana Hatherly, Ângelo de Lima, entre outros, Natália dá-nos a ler este poema intitulado:
Canção
para
haver
paz
oh da murta mutter
demeter de mater menu
tinturam niwu tinu
oh estar de ishtar
cibele s. belle menu
tinturam niwu tinu
Natália Correia
Mário Cezariny de Vasconcelos intitula o seu poema de:
Colapso
Tudo está
eternamente
escrito
(Spinoza)
Tudo está
eternamente
em Quito
(Uma rosa)
Mário Cesariny de Vasconcelos
in Manual de Prestidigitação)
Segundo a poeta e investigadora Ângela de Almeida, que se tem debruçado intensivamente sobre o arquivo da escritora, e que muito tem contribuído para alargar o conhecimento da obra e da personalidade de Natália Correia, afirma que este poema não se encontra entre os papéis da autora, de O Sol nas Noites e o Luar nos Dias.
Nunca poderemos saber por que razão a Poeta não diligenciou guardar uma cópia do jornal no seu arquivo, ou mesmo o rascunho desse poema entre os milhares de manuscritos que a Biblioteca Pública e Arquivo de Ponta Delgada, têm à sua guarda, e que diligentemente Ângela de Almeida tem trabalhado intensamente.
Achamos interessante chamar à atenção do poema, como uma nota de mera curiosidade para todos aqueles que apreciam a poesia de Natália, e admiram a extraordinária Mulher que o foi durante os seus anos de vida, deixando um legado que se há-de avivar nos anos vindouros, havendo novos públicos que a louvarão, e que nós, açorianos, nos orgulhamos de saber que foi nascida e teve berço nestas terras atlânticas, donde partiu, mas que, no fim, regressou à ilha, onde quis que repousassem as suas cinzas.
1Agradeço a António Pracana ter-me facultado a sua colecção de jornais Letras e Artes para recolher elementos para este apontamento.
Victor de Lima Meireles