Diário dos Açores

Outros Céus, outras Terras

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Estes dias tão íntimos acordam fantasmas reais ou estrelas imaginárias. Um rosto de inquietação ou de esperança, aproxima-nos dos laços mais profundos que nos prendem às raízes familiares.

Tempo repleto de memórias e que faz evocar na intimidade do lar e em redor da mesa da família os nomes de todos os que já passaram pelas nossas vidas, os amigos de longe e os amigos de perto. Os amigos das horas difíceis e os amigos das horas alegres.
Jaime Cortesão voltara do exílio, no Brasil, em 1957 e faleceu em 1960. O regresso a Portugal e com residência em Lisboa, permitiu-lhe completar investigações em arquivos nacionais e percorrer o País de norte a sul, detendo – se em tudo quanto lhe interessava. Entretanto, teve horas de tribulação política ao ser preso, com mais de 70 anos, em Caxias, (juntamente com António Sérgio, Vieira de Almeida e Mário de Azevedo Gomes) por estarem a organizar uma conferência sobre Democracia, a proferir por um deputado trabalhista britânico.
Mesmo assim, Jaime Cortesão manteve a atividade intelectual até quase aos últimos dias e fez, no seu último Natal (1959), uma divagação entre o humano e o simbólico. Estávamos numa época já assinalada pelas aventuras espaciais, cujos primórdios Jaime Cortesão acompanhou com interesse. O lançamento do primeiro Sputnik ocorreu a 4 de Outubro de 1957 e, pouco depois, a 31 de Janeiro de 1958, surgiu o primeiro satélite, o Explorer. O mundo inteiro, apesar da desconfiança e o ceticismo de muitos perante estas e outras audaciosas inovações, viria a assistir à chegada à lua. Foi a 21 de Julho de 1969, com a nave Apollo 11. Neil Armstrong protagonizou este acontecimento que ficou na história universal.
O Natal de Jaime Cortesão convocou os valores e ensinamentos tradicionais. Aprofundou as raízes de Ançã, terra onde nasceu e da qual nunca se desligou. Ele próprio confessa a emoção que sentia das suas origens, de «uma terra de dunas e lagunas, de bairrada e de pinhais, gândaras e pedreiras e de tão pródigas entranhas que a sua pedra, o calcário macio de Ançã de Outil e de Portunhos, serviu para construir retábulos, púlpitos e imagens distribuídas através de meio Portugal».
“Nascemos todos – escreveu – no mesmo estábulo. O melhor tesouro de cada um será o riso das crianças, as lágrimas de ternura, a alegria sem palavras, a bondade que brota, espontânea e gratuita como as flores na primavera».
A imaginação mergulhou no passado e procurou avançar para o futuro: “Vejo raiar na grande noite a Estrela que anuncia eternamente o nascimento do Menino; vejo o estabulo sem conforto onde a vaca rumina e o burro sonha; e vejo os Pais que se debruçam com ternura sobre o filho que vai remir a Humanidade. A criação do Homem e a sua redenção sobre o Amor continuam».
Mas Jaime Cortesão distinguiu-se de todos os seus contemporâneos, da Águia e da Renascença Portuguesa de Pascoaes a Afonso Duarte e da Seara Nova, de Aquilino a Raúl Brandão, sem esquecer Santiago Prezado, do Auto dos Pastores Brutos, em poesias e prosas com a marca que singulariza cada um. Cortesão associou a era espacial aos momentos alegóricos da comemoração do Natal: «O ser terrestre conhecerá em breve outros seres. Outros Céus. Outras Terras. Outras manhãs e ocasos múltiplos de sóis Quando sobre nós raiarem todos os sóis dos Céus, então os homens – ao mesmo tempo vermes da Terra e águias do Universo – terão forças para realizar todas as promessas do Natal e ouvidos para escutar o coro dos Anjos e a música das estrelas”. As prodigiosas aventuras que se realizavam para além do planeta levaram o homem – interrogava ainda – a sentir-se «desterrado do seu próprio mundo onde viveu milénios».
A chegada à Lua constituiu uma etapa de uma exploração espacial que tem prosseguido, nos últimos 70 anos, que não se sabe quando virá a ser concluída, que abre ampla reflexão acerca da cultura humanista e a cultura científica, entre as dimensões culturais, políticas e mediáticas. Confronta-nos com dinâmicas de conflito que caracterizam a contemporaneidade.
Todas as situações da natureza humana, neste tempo de Natal, vêm à superfície nos dias tão íntimos, em que fantasmas reais ou imaginários andam dentro de nós e caminham dentro de nós. Ganham um rosto de inquietação ou de esperança, que aproxima ou separa os laços que nos prendem à terra.

António Valdemar*

* Jornalista, carteira profissional número UM; sócio efectivo
da Academia das Ciências de Lisboa

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