Diário dos Açores

Em Montréal, uma experiência inesquecível

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Como praticamente todas as famílias açorianas, a minha também foi marcada pela emigração. No primeiro quartel do século XX, três tios meus, irmãos de minha mãe, emigraram, dois para a Califórnia e um para o Brasil. Naquele tempo, os que partiam rumo ao Brasil ou à América, rarissimamente regressavam, mesmo que fosse de visita; não porque o projeto tivesse fracassado, mas porque, por um lado, as viagens eram demoradas e, por outro, partiam solteiros, eram acolhidos em comunidades açorianas no seio das quais casavam e organizavam a vida. Nascíamos filhos, a vida impunha o seu ritmo, normalmente incompatível com ausências prolongadas. Quando vinha um certo vagar e largueza económica maior, os pais, que tinham ficado nos Açores, haviam falecido e o chamamento das ilhas era superado pelo apego aos filhos e netos. Continuavam a sentir-se açorianos até à medula, tinham as ilhas dentro de si.
Nos anos 60 e 70 emigrava-se por varadíssimas razões, sendo uma das fundamentais evitar que os filhos, os rapazes, fossem parar à Guerra Colonial. Foi assim que um dos meus irmãos, o que menos vontade tinha de sair da Terceira, foi para o Canadá. Muitos dos que partiram nesta emigração da segunda metade do século vinte, diferentemente do que foi regra na do início do século, passados dois ou três anos da chegada ao país de acolhimento, vinham de férias às ilhas, norte das suas vidas. Eles tinham saído das ilhas, mas as ilhas não os tinham abandonado e atraiam-nos.
Até muito recentemente, portanto, o meu conhecimento da emigração ficava pelas cartas que os meus tios escreviam a minha mãe, pelas estórias de família, e não só, que ia ouvindo e, nos últimos anos, por ter família muito próxima no Brasil e no Canadá. Em 2019,contudo, comecei a colaborar com três jornais da diáspora açoriana pelo que, a partir dessa data, a emigração começou a chegar-me a casa através deles, alargando-se as minhas fontes de informação. No mês passado, finalmente, tive a minha primeira experiência ao vivo de uma comunidade açoriana da diáspora e foi uma experiência inesquecível.
A ideia vinha de longe, de ainda antes da pandemia, mas concretizou-se este ano. Norberto Aguiar, editor, chefe de redação e alma do jornal LusoPresse, de Montréal, e do programa de televisão LusoQ TV, dois órgãos de comunicação social portuguesa, convidou-me a participar na conferência “A Comunidade Portuguesa do Quebeque – uma visão do passado, presente e futuro” que decorreu nos dias 18 e 19 de novembro, comemorativa do vigésimo sétimo aniversário do jornal e do décimo aniversário do programa de televisão que decorreu na Casa dos Açores daquela província canadiana.
O colóquio foi constituído por vários painéis que foram desde “Emigração/Imigração” a “Literatura/Artes plásticas e de cena”, passando por temas tão importantes para a comunidade imigrante açoriana como “A Mulher na Comunidade”, “A Juventude na Comunidade”, “A Comunidade” e “Os Meios de Comunicação Social”. Os palestrantes, vários membros da comunidade açoriana no Quebeque, outros vindos do Brasil, dos Estados Unidos, de Andorra, dos Açores e do Continente, abordaram diversos subtemas atinentes aos títulos dos painéis, dando um quadro geral da emigração/imigração açoriana, da sua história, das dificuldades e das oportunidades que os emigrantes encontraram/encontram no Canadá, do papel e importância dos órgãos da comunicação social da diáspora, do passado e do presente da comunidade, e do que se pode perspetivar para o futuro.
Foram dias de trabalho intenso, com comunicações de grande qualidade, com informação rigorosa, detalhada, com dados estatísticos e reflexões sugestivas que deram um quadro geral da história da emigração – a 13 de maio do corrente ano comemoraram-se os 70 anos de Imigração Portuguesa no Canadá. O colóquio teve o seu encerramento num jantar de gala no Centre Renaissance, com a entrega dos Prémios Corte-Real, do LusoPresse, de 2023. Durante o jantar, para além da participação da soprano Alexia Martins, artista oriunda da comunidade, ouvimos música tradicional açoriana, e não só, superiormente cantada por João Ponte, acompanhado ao piano por Cármen Súpica, vindos expressamente de Lagoa, São Miguel. Do vasto reportório apresentado, os “Olhos Pretos” e “Ilhas de Bruma” calaram fundo no auditório.
Como disse, foi a minha primeira experiência de convívio com uma comunidade da diáspora. A simpatia da receção, a atenção com que nos acompanhavam, a disponibilidade para ajudar em tudo o que fosse necessário foram uma constante; percebia-se que Norberto Aguiar e a sua equipa tinham feito um planeamento exaustivo e tudo correu sobre rodas. Quanto ao colóquio propriamente dito, admirei a organização impecável, a qualidade do programa, os oradores convidados e suas exposições e os momentos de convívio entre painéis, que alguns dizem, com razão, ser o melhor destas iniciativas, que aproveitei para falar com pessoas conhecidas apenas da leitura dos seus textos no LusoPresse e das pequenas fotografias que os acompanham.
Não vou aqui refletir sobre todos os temas de debate, porque precisaria de largo espaço, mas apenas sublinhar dois ou três que me pareceram particularmente significativos. Como se verifica em toda a diáspora, a Igreja Católica teve um papel importante no apoio aos imigrados açorianos, principalmente nos primeiros tempos da emigração para o Canadá, tal como aconteceu na emigração de continentais para a Europa, como tive possibilidade de verificar nos anos 80, quando estive a estudar em Louvain-la-Neuve, Bélgica. Chamou-me, também, a atenção o modo como a comunidade açoriana no Quebeque se integrou e, normalmente, venceu o desafio que significa chegar a um país multicultural como o Canadá e ser capaz de organizar a vida sem perder as suas raízes. Não digo que, na emigração de que falo tudo correu bem, que não há pobres na diáspora – um dos subtemas discutidos no colóquio foi a pobreza – mas, regra geral, os nossos emigrantes chegaram, viram e venceram.
Outro tema que me tocou especialmente foram as preocupações com o futuro da comunidade; diversos intervenientes aludiram a este tema. Eu, que tenho imensa dificuldade em fixar números, retive estes dois: durante os tempos áureos, o número anual de entradas de imigrantes chegou a 15 000 e agora, embora o Canadá tenha as portas abertas, são menos de 500 os que chegam por ano; há, portanto, um envelhecimento acelerado da comunidade. Percebi esta preocupação até numa conversa em privado com uma das palestrantes que acompanhou os convidados não residentes no Canadá numa visita a Montréal. Dizia que já há jovens da comunidade que se identificam como “canadenses” (foi o termo utilizado) e não como “açorianos”, o que considerava sintomático. Este reparo mostra o que é ser português na diáspora: é-se português de outra maneira, com uma outra intensidade, com outra vibração, só entendível verdadeiramente por quem emigrou ou conviveu com portugueses imigrantes nos países de acolhimento.
Regressado a casa, a Braga, depois daqueles dias tão intensamente vividos, pensei que o convite de Norberto Aguiar me tinha proporcionado a experiência que me faltava para perceber, de um modo mais profundo, o que é ser português e, acima de tudo, o que é a “Açorianidade”, de que falou Vitorino Nemésio no texto publicado na revista Insula; em 1932. Fico-lhe imensamente agradecido.

José Henrique Silveira de Brito
Braga, dezembro de 2023

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