Os motivos da queda 2/2
Arnaldo Ourique

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“Mas um governo não cai apenas com o pedido de demissão do titular da Presidência; também cai pela sua impossibilidade física duradoura, pela rejeição do Programa do Governo, pela não aprovação de uma moção de confiança e pela aprovação de uma moção de censura; e certamente cairá também se o seu orçamento não for aprovado.”

 

No 1º texto apontamos os motivos por que o PS perdeu o poder em out.2020, e centramo-nos num modus operandi identitário de Vasco Cordeiro que o fez perder a hipótese de um terceiro mandato. Esta conclusão levou-nos a outro assunto: é que além de ter perdido jogadores (pessoas que nas autárquicas mudaram de camisola) e associados (por novos ingressos nos partidos do governo parlamentar), acresce um ponto central: como falamos no 2º mandato e de que não foi suficiente para realizar o 3º mandato, traz-nos à colação a limitação de mandatos. É que o Estatuto Político, no texto mais recente de 2009, instituiu, no artº105º a limitação de mandatos de Presidente do Governo Regional: «1-O Presidente do Governo Regional só pode ser nomeado para três mandatos consecutivos. 2-O Presidente do Governo Regional, depois de concluídos os mandatos referidos no número anterior, não pode assumir novo mandato durante o quadriénio imediatamente subsequente ao último mandato consecutivo permitido. 3-No caso de apresentação de pedido de demissão, no decurso do seu terceiro mandato consecutivo, o Presidente do Governo Regional não pode ser nomeado na sequência das eleições imediatas nem nas que se realizem no quadriénio imediatamente subsequente à demissão».
E esta norma merece atenção: quem preparou tal texto apenas vislumbrou as situações em que o indivíduo realiza três mandatos consecutivos, e não apenas um ou dois. Esse pensamento legislativo condiz com o pensamento político de então: é que ninguém imaginava que não fossem os candidatos do PS a ganhar as eleições, precisamente porque a fraqueza do sistema de governo permite governos de grande vetustez. Para o legislador nacional (que aprova a lei do Estatuto, e que é uma lei da Assembleia da República) – que a fez, neste caso, e fez a vontade ao PS de Carlos César, a regra é muito simples: existem três mandatos consecutivos, e não pode concorrer durante os quatro anos seguintes ao fim desse 3º mandato; e se o titular pedir a sua demissão no decurso desse 3º (e último mandato), não poderá concorrer nem nas eleições imediatas (sejam em eleições antecipadas, ou sejam em eleições na data normal se acaso do parlamento se conseguisse formar governo, evitando as eleições antecipadas), nem nos quatro anos seguidos.
Mas um governo não cai apenas com o pedido de demissão do titular da Presidência; também cai pela sua impossibilidade física duradoura, pela rejeição do Programa do Governo, pela não aprovação de uma moção de confiança e pela aprovação de uma moção de censura; e certamente cairá também se o seu orçamento não for aprovado. Toda esta norma foi talhada para Carlos César, como o próprio o afirmou por diversas vezes  (de memória: “fui eu que tive a ideia e impus um limite de mandatos”): não queria fazer mais do que três mandatos (e que devido a Cavaco Silva, por problemas de várias inconstitucionalidades no Estatuto, acabou por fazer quatro mandatos como Presidente). Compreensível aliás: já tinha vinte anos de oposição e queria fazer outras coisas no âmbito nacional, como aconteceu; e assim garantindo que os seus sucessores, por muito bons que fossem, não tivessem mais do que três mandatos.
Mas as leis não são interpretadas pelo pensamento do legislador; são-no pela hermenêutica jurídica das leis. Mas retirando a parte – muito visível do pensamento regional e limitador de então – a lei também, por si só, dá-nos outra ideia: a de que o impedimento de acesso ao novo mandato depois de ter pedido a sua demissão durante o 3º mandato, apenas se refere a esse caso de pedido pelo próprio da sua demissão. Mas essa limitação, pois, não abrange as restantes situações que podem provocar eleições antecipadas – a impossibilidade física duradoura do titular, a rejeição do Programa do Governo, a não aprovação de uma moção de confiança, a aprovação de uma moção de censura, e eventualmente a não aprovação do orçamento regional – e que, assim, podem concorrer imediatamente a um novo mandato depois de ter sido travado o 3º por um daqueles cinco motivos (quatro, porque é pouco provável que a impossibilidade física duradora não seja efetivamente duradora).
Ou seja, esta norma, assim feita, junta-se ao fraco sistema de governo. É que é muito fácil provocar a queda do Governo pelo próprio a meio do 3º mandato, a exemplo, pela não aprovação de uma moção de confiança. E assim, o Presidente do Governo durante parte do seu 3º mandato poderia governar em regime de duodécimos até às novas eleições e assim concorrer, de novo, a um novo 3º mandato completo; ou a um novo (inteiro) 3º e 4º mandatos, e assim sucessivamente. Então para que serve uma norma a limitar a três mandatos o cargo? se o jogo pode com facilidade ser viciado?
Isto tudo mostra que quando as normas são pensadas pelos próprios políticos e para si próprios, sem juízos de prognose que os sustentem e sem conhecimentos científicos que os abalizem, a ordem jurídica fica manchada. Para a democracia funcionar bem, as regras do poder político são as que necessitam de maior clareza. Em comparação, só por mera compreensão, até é admissível normas confusas sobre direitos fundamentais na justa medida em que, em última instância, qualquer necessidade de esclarecimento são garantidos pelos tribunais; mas não existe, no nosso paupérrimo sistema de governo, controlo político para este tipo de norma. Pode, é certo, desencadear-se a intervenção do Tribunal Constitucional em fiscalização sucessiva para uma declaração com força obrigatória geral (a norma deixa de poder ser aplicada); mas para quê, se se pode alterar a lei? E quem a quer revogar?, ou ajustar? Não existe paralelo no Estatuto da Madeira; e isso já diz muito: a sua história de quatro décadas com o mesmo PSD não provocaram tal necessidade.
Podemos então concluir: a qualidade política das regras depende da qualidade humana dos seus autores, mas também da necessidade política. A que acresce outra conclusão: as normas pessoais têm sempre consequências negativas no tecido do funcionamento das instituições políticas, mas só sabemos disso quando é ativada. Ou seja, Vasco Cordeiro foi herdeiro de selos negativos; e não os quis mudar. Está tudo perdido?: não, não está. Da mesma maneira que Cordeiro construiu a sua queda, Bolieiro está a construir a sua. O 1º, porque não quis olhar a autonomia como garante da qualidade de vida dos insulares, mas tão-só como meio de governar; o 2º, porque quer a autonomia pela concórdia, mas, para já, e já com um ano de governação, apenas sobressai o desequilíbrio, o vazio e a confusão.

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