A antologia da poesia açoriana
Vasco Rosa

A antologia da poesia açoriana

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Centenário de Pedro da Silveira (1922-2022) III

Há dias, em Angra do Heroísmo, conversando com amigos acerca do próximo centenário de Pedro da Silveira defendi a ideia de tentarmos recuperar, em versão digital de livre acesso, a sua Antologia da Poesia Açoriana publicada em 1977, nunca reimpressa desde então mas sem dúvida um dos seus trabalhos mais distintos, coincidente com um momento particularmente relevante para a história insulana — o da sua autonomia administrativa —, que ele quis expressamente sublinhar com uma afirmação inequívoca de vitalidade literária. Prudentes e sensatos, referiram-se à obrigação de se atender a direitos autorais ainda vigentes; porém, acredito que com boa-vonta de isso se resolve sem prejuízo, antes com benefício de todos.
Já tive oportunidade de divulgar uma carta do florentino a Vitorino Nemésio relativa a este assunto, em que também ficavam patentes quanto este projecto lhe foi caro e a amplitude dos trabalhos de investigação nele implicados. Na semana em que Natália Correia fica em evidência através duma nova série televisiva, fui encontrar na Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada esta outra carta que Silveira enviou à escritora micaelense, em que, além de lhe pedir consentimento e elementos biográficos, lhe manifesta apreço pessoal pela sua liberdade de parlamentar sem papas na língua. Mas mais ainda, sublinha a finalidade da sua Antologia: a de mostrar a «cavalgaduras marroquinas» do continente quanto os escritores açorianos são «os europeus que somos», de espírito inteiro, sem adjacências ou periferias de qualquer tipo.
No momento certo, na medida justa e de forma limpa e clara, com um lastro de séculos de literatura a seu favor, Pedro da Silveira foi então — sem rival evidente — o mais preparado e habilitado defensor da identidade cultural do arquipélago. Quase cinquenta anos depois, a sua Antologia da Poesia Açoriana merece ser divulgada como o marco histórico que foi. Esse antes e depois não deve ser esquecido, antes apreciado de novo por todos, até como estímulo a que renovadas e frescas perspectivas de idêntica amplitude ou só para o período 1980-2020 possam surgir, identificando vozes recentemente consagradas ou promessas ainda emergentes.
Um pequeno esforço, açorianos!


*
Lisboa, 1 de Março de 1976
Cara Natália,
O importante recordo que por esta lhe dou é como segue.
Estou a acabar uma antologia da poesia açoriana, do século XVIII até 1974, que, em princípio, será publicada pela Sá da Costa — desde que a publique este ano. E, clarinho como água, a Fajã de Baixo não podia ficar de fora (até porque é «regionalismo» importante, com dois poetas que se chamam Duarte de Viveiros e Natália Correia). Daí que eu lhe venha bater ao ferrolho.
1.º Para que autorize a representação da dita Natália Correia.
2.º Para que acerca dela me informa a) de que idade veio para Portugal; b) quando se estreou, na imprensa, como poetisa (não gosto disso de mulher poeta, que cheira a francês mal traduzido); c) se publicou mais algum livro de poemas depois da Mosca Iluminada (último dos que tenho).
Quaisquer outros dados que lhe ocorram de interesse biográfico são bem-vindos, embora me pareça que tenho os essenciais para as 20-30 linhas da praxe.
Não me lembro agora, de cor, se foi na biografia do Virgílio de Oliveira ou na do Raposo de Oliveira que pus uma referência ao vosso parentesco. Não me enganei, pois não?
São talvez 81 poetas (três ainda estão duvidosos), não poucos dos quais de excepcional (às vezes insuspeitada) qualidade. Uma maneira de mostrar a estas cavalgaduras marroquinas que somos os europeus que somos! Há líricos, satíricos e, até, porque tem realíssimo talento, um satírico-obsceno: o padre José António de Camões (com trechos do Testamento de D. Burro, Pai dos Asnos). Do 6.º avô do Jorge de Sena, Manuel Inácio de Sousa (1739-1801), dou um soneto até agora inédito que é uma verdadeira obra-prima de lirismo amoroso.
Continue a bater-lhes, que ainda mexem.
Um abraço do amigo e compatriota,
Pedro da Silveira
Rua Freitas Gazul, 14, 2.º Esq, Lisboa – 3

Arquivo Natália Correia, doc. 2297
Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada

 

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