A unidade regional na semântica histórica
Arnaldo Ourique

A unidade regional na semântica histórica

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“A revolução liberal, ou melhor, as consequências da revolução liberal, o que vieram desencadear nos Açores foram os ideais de ilha-distrito, contrários à consciência “regional”: e por isso mesmo as ilhas foram divididas em juntas distritais a partir de 1832, na prática apenas com o Código Administrativo de 1836 até 1975.”

 

«A revolução liberal teve um impacte profundo nos Açores e torna-se, por isso, necessário analisá-la para se compreender as origens da consciência regional açoriana». Esta frase, na generalidade redita, ilustra um certo pensamento da história açoriana: a observação do arquipélago na sua história política – como se ela tivesse início no século XIX; quando, em verdade, a história dos povos começa no seu início, e nos Açores começa precisamente com o seu povoamento. E tendo em conta que as ilhas, grosso modo em função de cada uma, mas sobretudo a Terceira (fácil desbravamento, boa orografia, bons portos naturais, centro de correntes marítimas favoráveis), tiveram um enorme desenvolvimento no seu povoamento, e que, portanto, no seu início não andávamos de tanga e descalços por entre o mato e a comer ao relento nas florestas como se fossemos povoações neolíticas; o nosso povoamento foi todo ele político e politicamente intencional. Isto é, a política do arquipélago – remonta ao tempo em que governávamos as ilhas ao modo do seu próprio tempo, com uma enorme autonomia própria de então e com uma enorme consciência “regional”, uma consciência das ilhas como grupo de ilhas, embora governadas cada uma por si, até, aliás, à escala de comarca, e rapidamente controladas num governo central para o seu efetivo controlo, da fazenda, da marinha e da defesa, tudo feito pelos súbditos sob os auspícios do rei.
Mas estabelecer a revolução liberal como sendo o motor da consciência regional açoriana, para além do pecado original de desconsiderar muitos séculos de história; tem um lado negro: é que os ideias do liberalismo fizeram precisamente o contrário. A revolução liberal, ou melhor, as consequências da revolução liberal, o que vieram desencadear nos Açores foram os ideais de ilha-distrito, contrários à consciência “regional”: e por isso mesmo as ilhas foram divididas em juntas distritais a partir de 1832, na prática apenas com o Código Administrativo de 1836 até 1975.
A consciência “regional” da antiguidade açoriana (desde o povoamento até ao liberalismo) não pode ser compreendida à imagem dos nossos atuais sentimentos. Ela tem que ser encontrada nos modelos políticos e jurídicos daquele tempo. Desde logo o seu “descobrimento” e povoamento: as ilhas estavam em bloco, quer estas, quer outras que se encontrassem. No povoamento da ilha Terceira, Álvaro Martins Homem, antes de se dedicar ao povoamento, deixou essas funções aos seus amigos e navegou pelos mares à procura de outras ilhas; e os emblemáticos irmãos Corte-Real que tinham o mesmo trajeto, modelo então em vigor para assacar espaços onde se pudessem criar riquezas. Não era a pequena dimensão das ilhas que imprimia a necessidade de governos de ilha e de comarcas; o que impelia a governação de cada ilha era a natureza da política de então que consistia na descoberta, na colocação do pavilhão, depois a preparação seguida do povoamento; mas passada essa elementar fase, o governo central passou à fase seguinte: o controlo efetivo e naturalmente com uma organização centralizada em matérias cruciais como a arrecadação dos impostos, a defesa para manutenção do status económico e político. É destes primeiros encontros de poder político que nasce em Angra do Heroísmo os serviços centrais do reino, poder que se vai engordar rapidamente como é próprio de qualquer administração pública e política.
Não nos interessa agora apontar quais os primeiros modelos dessa governação centralizada; ela é muito conhecida, embora sem estudos sistémicos e especificamente de história política, porque existem apenas e sobretudo estudos de história social e económica. O que importa fixar é que as ilhas, logo nos primeiros anos, têm um contexto de ilhas e não de ilha. E as restantes ilhas, quando começam a questionar o poder deAngra, a sua luta não está contra nas populações da Terceira, que estas também viviam, a seu modo, algum tipo de escravidão (grandes fardos do custo de produção desviados para os senhores locais representantes do poder real); pelo contrário, estavam contra os abusos de poder. Quando o nosso 1º historiador, Gaspar Frutuoso, em Saudades da Terra, escreve e descreve as ilhas em 1586, distingue-as no seu próprio grupo de ilhas: o grupo dos Açores, da Madeira e das Canárias. E quando o nosso 1º pensador autonómico, António Cordeiro, em 1717, na História Insulana, descreve as ilhas, ele descreva-as também como grupos, Açores, Canárias, Madeira e Cabo Verde (lendo a obra e não a organização do índice). E por isso mesmo ele pensa a autonomia política – no seu registo setecentista; isto é, o poder de Sua Real Majestade era emanado diretamente de Deus, e as ideias de autonomia (fazer por si só, embora sujeito àquele poder superior) e política (fazer por si só algo mais do que o privado) eram relativos a essa hierarquização suprema. Dizíamos, portanto, ele aí pensa a autonomia política num registo de “regional” (de grupo de ilhas), quando propõe (um bispo em cada um dos três grandes centros urbanos, Angra, Horta e Ponta Delgada, e um arcebispo como governo central eclesiástico em Angra, e) um tribunal de relação do arquipélago na capital política de então, em Angra.
Fazendo um esquema comparativo desse tempo com a atualidade: hoje o arquipélago tem uma autonomia política regional com poder legislativo, governativo e orçamental. Mas ao lado desse poder regional, existem os poderes locais, as câmaras municipais que participam em projetos, em conjunto com o governo, que têm dimensão municipal e regional (uma instalação desportiva, uma estrada; ou um aeroporto, um porto comercial); a que acrescem os serviços regionais do Estado na Região que em cooperação entre o poder local e regional, promovem a criação de projetos de dimensão regional (um estabelecimento prisional, uma estação meteorológica). Em seiscentos era muito diferente: o poder da comarca era enorme, o que incluía os juízes e os tribunais; mas o seu alcance era limitado à ilha ou mesmo apenas à comarca; o governo real entregava os seus serviços a um conjunto de instituições que se centravam numa ilha, em Angra, e daqui governam as restantes ilhas, mas num governo fiscal e de fiscalização, de defesa e de soberania (arrecadação de impostos, feitura de obras como muralhas e fortes). Desta enorme diferença de organização e poder sobressai o ponto nevrálgico: que as ilhas são governadas, em termos políticos, no seu conjunto (com as variantes do seu tempo e ao longo dos séculos). Foi assim em 100% entre o povoamento e 1836: território “regional” e de grande imprecisão concetual autonómica, mas com enorme poder autonómico. Foi assim em 100% entre 1836 e 1975: território “regional” e distrital e de grande entendimento autonómico, mas de grande imprecisão autonómica. E é agora desde 1976: território regional, enorme precisão concetual autonómica e melhor autonomia. A unidade das ilhas (unidade “regional”) sempre existiu, à força e contra a vontade das ilhas, e muitas vezes contra Angra; o que não existiu desde o seu início foi uma conceção esclarecida; mas foi pensada e foi sentida. E a matriz de unidade nacional da atualidade – é disso sinónimo, porque significa a existência de diversos governos numa divisão política do território que desemboca na regra constitucional da «igualdade real entre todos os portugueses».

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