Quem se perde: o mundo ou o Homem?
Patrícia Carreiro

Quem se perde: o mundo ou o Homem?

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Communicare: tornar comum

“Antes perdido nas páginas de um livro do que na própria consciência.”

 

Desde há muito tempo que tenho o mesmo sonho, de tempos a tempos: estou na praia e uma enorme onda transcende-me e cobre-me, literalmente. Vivo (sonhando) um tsunami, portanto.
Este é sempre um sonho que me aflige e que me faz acordar inquieta. No entanto, ler sobre esta realidade foi bastante mais interessante; inquietante, mas enriquecedor.
Descobri o João Nuno Azambuja através da Maria João Covas, booktuber, e devo dizer que foi uma descoberta e peras. O livro Autópsia, editado pela Guerra & Paz, foi a minha primeira leitura deste autor português e sobre a qual vos escrevo hoje.
Imagine uma ilha pequena pilhada de gente que partilha tudo por falta de espaço. Casas, dramas, momentos bons, zangas, disputas, tudo o que se possa imaginar.
Assim se vive em Autópsia, a única ilha que sobreviveu após o cataclismo que soterrou o mundo inteiro. Todos os dias a ilha treme e afunda-se um pouco mais e o destino de toda aquela gente é morrer afogada, mas “Autópsia, pulsando de vida, sentia-se o coração do mundo civilizado – mesmo que não houvesse mundo e só pulsasse aquele pequeno coraçãozinho inquieto”.
Ainda assim, a vivência do ser humano é baixa, vil e vã. Cada um preocupado com o seu umbigo, chega o dia em que um desconhecido, um pobre e feliz rapaz, encontra a ilha e pretende ajudar alguém que, através de uma garrafa de vidro entregue ao mar, pediu ajuda.
Do altruísmo e da compaixão deste jovem, partimos para o desespero do abismo de todos os que dali querem sair e que farão tudo por tudo para o conseguir. E o egoísmo segue em catadupa tão bem descrito pelo João Nuno que nos sentimos mesmo lá, ora vivenciado a rotina de Joseph Santorini ou de tantos outros personagens que, sem que percebamos bem como, se tornam tão importantes como o Joseph.
Um livro que fala de livros é sempre um livro maior e neste caso o Joseph encontra-se diariamente com os livros que vão chegando à costa vindos de um mar imenso de lixo que, não sendo reclamado pelos donos, sobem à superfície a ver quem os adota. E Joseph cuida deles, seca-os, estima-os e lê-os, aprendendo tudo o que precisa. No fundo, tem os livros por amigos e é neles que encontra a sua esperança, porque “às vezes não é preciso um tratado, uma obra imensa, para acender a chama que nos arde no peito”.
É que apesar do futuro falido e garantido para aquela ilha, os seus residentes nunca desciam daqueles tamancos e acreditavam ter todo o poder do mundo, mesmo sabendo que “o poder, sepultado no fundo do mar, vale tanto como um calhau sem préstimo perdido na areia”.
E quando tudo se perde mesmo, num vão momento de desnorte e de angústia, o autor consegue fazer o imprevisível e desenlaçar a história de uma forma magistral.
De que serve um livro se não nos apresentar formas diferentes de vida, garantindo-nos que a nossa, por mais atabalhoada que seja, é – muitas vezes – abençoada e rica? Porque foi isso que louvei dentro de mim ao ler este livro: a minha qualidade de vida, a minha privacidade e a segurança de estar em terra firme e seca, pelo menos até prova em contrário!
As pessoas de Autópsia não são diferentes das de outra ilha qualquer, ou de outro país; são apenas mais desesperadas, mais aflitas e angustiadas, como que se aquela prisão fosse o grande motivo para o aceleramento das suas mentes. E era-o, claro!E por isso mesmo “nenhum deles indiciava normalidade, aquela normalidade social que se espera encontrar nos seres humanos com quem se lida, e que quando não se encontra provoca escândalo”.
Mas há sempre um homem que se deixa para trás e que vê a realidade melhor que os outros, como que iluminado pela sua fé e pelas suas crenças, sejam elas quais forem, e “Joseph Santorini não amava a vida a qualquer custo, amava a felicidade, o prazer de estar vivo, aquilo que faz da existência um milagre da Criação”.
Seja como for, neste livro todos procuram uma escapatória, pois “será possível viver sem um escape? Será possível existir sem fantasiar que não se existe?”. Sem dúvida que não será possível, assim como é muito certo que “não é Deus quem destrói [a ilha], são os homens que perderam o interesse em salvar-se por se julgarem superiores à verdade”.
Um livro maior que nos fala da destruição que os homens fazem a si próprios e ao planeta. Parabéns, João Nuno, por este consciencioso livro.
Boas leituras!

 

*www.patriciacarreiro.blogspot.com

 

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