1º governo constitucional   do país em Angra do Heroísmo
Arnaldo Ourique

1º governo constitucional do país em Angra do Heroísmo

Previous Article Previous Article Navios-cruzeiro não trazem só vantagens
Next Article Dissolução,  obviamente! Dissolução, obviamente!

“As cortes, que eram as assembleias legislativas do “povo” (clero, nobreza e senhores) não tinham regras escritas sobre as formas de governar e se deliberam sobre a constituição política (transmissão do poder) limitavam-se a seguir a vontade do rei.”

 

É consabido que Angra do Heroísmo foi por duas vezes capital do país em situações especiais. Esse registo insere-se na história política dos Açores e, portanto, no âmbito do Direito Constitucional e, nesse circuito, já mostramos que esses factos são fidedignos e que correspondem a uma realidade histórica incontornável. E já por diversas considerarmos que a Regência da Terceira constitui o 1º governo constitucional do país; e agora vamos dar essa explicação no mesmo registo demostrativo. Para isso temos de explicar algumas ideias sobre a “constituição política”.
A constituição política de um país é o conjunto de regras pelas quais se rege o poder político – naquilo que são os órgãos de soberania que detêm o poder. Isso significa que a maior parte da história da humanidade os países tiveram constituições consuetudinárias e, só muito mais tarde, escritas. Mas a partir da idade moderna, com o advento do liberalismo, foi introduzida a ideia de constitucionalismo, ou seja, um Estado tem de possuir um documento unitário e escrito e sob a forma de um código, e a esse código se designou Constituição. Até ao século XVIII as constituições políticas dos países eram simples cartas dos reis, testamentos e regras consuetudinárias sobre sobretudo a transmissão do poder.
Em Portugal era esse também o paradigma. Até ao liberalismo vintista eram consideradas leis fundamentais apenas as que regulavam os casamentos e as tutorias na menoridade do príncipe, do rei e da sua sucessão. Como o rei era considerado o pai dos súbditos a preocupação política era a manutenção desse carisma; importava mais a manutenção do paterfamilias do que os direitos dos súbditos. As cortes, que eram as assembleias legislativas do “povo” (clero, nobreza e senhores) não tinham regras escritas sobre as formas de governar e se deliberam sobre a constituição política (transmissão do poder) limitavam-se a seguir a vontade do rei. Era esse o saber, e o sentimento, que vivíamos no século XVIII. Mas com o liberalismo em Portugal, na década de vinte do século XIX, a monarquia foi obrigada a aceitar que a Constituição política fosse, por um lado, efetivamente uma Constituição (separação de poderes, legalismo e direitos fundamentais) e, ainda assim, em modo codificado (positivismo e constitucionalismo). E isso aconteceu realmente com a 1ª lei fundamental, a Constituição de 1822.
No entanto, a introdução desse extraordinário acontecimento (que implicava também a existência de uma assembleia de deputados, e já não meras cortes à maneira antiga, embora ainda se designassem cortes) – não correu assim tão simplesmente porque o país, nesse tempo, atravessou enormes dificuldades políticas consequentes das invasões francesas que trouxeram os ideias parlamentares de Inglaterra e revolucionários de França. Ou seja, a Constituição foi aprovada – mas não se criou, em rigor, um governo constitucional. Vamos ver como.
Em 1820 acontece a Revolução Liberal do Porto e é instaurado o regime liberal; liberal nesse tempo era sinónimo de constitucionalismo-liberal, pois o movimento estava sustentado na necessidade de uma Constituição e, pois, era uma Constituição, e não um qualquer documento avulso, que determinava um governo constitucional, isto é, o estabelecimento das regras do poder, dos órgãos, dos direitos fundamentais e das suas garantias. Desde 1807 a sede do governo estava no Brasil, e com a morte de D. Maria, D. João VI é aclamado rei em 1821, e no ano seguinte ele jura a Constituição Liberal de 1822. No entanto a Constituição não chega a ter aplicação: o seu filho, D. Miguel, promove um golpe de Estado sem êxito (Vila-Francada, 1823), promove outro logo no ano seguinte (Abrilada), e nesse ambiente social e político o rei morre em 1826 e, por via disso, o Conselho de Regência é presidido pela sua filha Infanta D. Isabel que escolhe, como sucessor da coroa, D. Pedro (que estava ainda no Brasil), e este, já como D. Pedro IV de Portugal, ainda nesse ano, declara a Carta Constitucional (“Constituição” de 1826); e, porque é imperador no Brasil, abdica a favor da sua filha, D. Maria II, para que esta case com o antedito autor dos dois golpes de Estado, D. Miguel, para garantir a sucessão régia, coisa impensável à altura, porque os vencedores eram liberais, e o vencido era absolutista. Isto é, o governo sob a alçada da Constituição de 1822, 1º, não aconteceu no país, por funcionar um governo de regência híbrida; 2º, porque não teve aplicação prática afinal. Ou seja, em rigor, não existiu um governo constitucional no país com a Constituição de 1822. Regressado do estrangeiro ao país, D. Miguel é aclamado rei absoluto pelas cortes de 1828 e reina até 1834. Antes do início da guerra civil em 1832, portanto, o governo era cartista, isto é, mantinha, através da Carta Constitucional, o poder absoluto o que reduzia a natureza constitucional de uma Constituição. De facto, a Carta Constitucional de constituição apenas tinha o nome: 1º, porque fez regressar ao país o modelo absolutista; 2º, porque os ideias desse tipo de leis fundamentais era o antigo que antedissemos, interessava o poder do rei e nada mais que inclusivamente podia suspender as decisões dos tribunais; 3º, precisamente por isso, os direitos fundamentais transitaram para o fim do documento e sem valor constitucional prático. Ou seja, a Carta Constitucional não era, em rigor, um documento liberal; e, aliás, nem teve nesses inícios temporais, em termos práticos, aplicação devido aos tumultos seguidos da guerra civil.
Mas nesse emaranhado de revoltas políticas, os ideais liberais estavam assegurados na ilha Terceira, em Angra, onde a partir, numa 1ª fase iniciática, de 1829, foi criada uma regência liberal. Regência criada pelos partidários do liberalismo, D. Pedro IV e sua filha D. Maria II, com os partidários mais influentes do Partido Liberal, Palmela (conservador e amigo do modelo inglês), e Mouzinho da Silveira (cultor do Direito, positivista liberal). É aqui nessa regência que se encontra o 1º governo constitucional do país: 1º, porque forma-se um governo inteiramente liberal e constitucional, sem ter qualquer Constituição na prática, mas seguindo os ideais da Constituição de 1822; 2º, porque essa regência veio a traduzir a fação política que ganhou; 3º, porque foi precisamente aqui nessa regência que Mouzinho da Silveira arquitetou uma organização política do país que veio a tornar-se o modelo nacional durante séculos (e que teve uma influência decisiva na autonomia constitucional da atualidade; já falamos sobre isso).
Na 1ª vigência das duas primeiras constituições portuguesas nenhuma teve aplicação prática. Mas o poder político que saiu vencedor e com ele o constitucionalismo esteve reunido em Angra na única regência verdadeiramente constitucional. Aqui se pensou e arquitetou os principais princípios constitucionais do futuro país, através da Regência d’Angra em 1829, confirmada em 1830 e 1832, e legitimada nas Cortes de 1834: porque se baseavam no ideário da separação de poderes e nos direitos fundamentais. O constitucionalismo português foi iniciado pela Constituição de 1822 (e aí os Açores tornaram-se naquilo que são hoje, uma parte integrante do território nacional; também já falamos sobre isso), mas aquele que foi o 1º governo constitucional na prática foi criado e experienciado em Angra; a conquista liberal do país partiu das águas da Baía d’Angra, levou consigo a Regência Constitucional e com ela aquilo que somos hoje.

 

Share

Print

Theme picker