O futuro escreve-se no passado
Lúcia Simas

O futuro escreve-se no passado

Previous Article Previous Article Palavra emprestada, palavra violada
Next Article A ilha das Flores em prosa A ilha das Flores em prosa

Fragmentos vernianos

 No conjunto da obra de Júlio Verne há a presença do filho, Michel Jean Verne (1861 - 1925) e de Honorine. Os cuidados maternais falharam pela vida mundana e excesso de viagens. Michel Verne tornou-se tão rebelde que o pai o enviou numa viagem marítima e, já desesperado, fechou-o numa Colónia Penal para delinquentes em 1876. Ao 19 anos causou um escândalo ao fugir com uma actriz. Juntou-se à família em1883 e casou-se mas abandonou, com grande indignação, a esposa recém-casada fugindo com Joanne Reboul, de 16 anos, de quem teve dois filhos antes da conclusão do divórcio.
   Os Verne, pai e filho, mantiveram-se prudentemente afastados da política, pois se atravessavamépocas conturbadas, com o regresso da Monarquia. À queda da Comuna juntava-se a crescente hostilidade franco-alemã, e as publicações orientavam-se para temas em que, mesmo após a morte do editor Hetzel,  a veia das viagens maravilhosas dominavam o grande público. As antecipações fantásticas e invenções assombrosas arrebatavam maior público. Surgia o telefone, a transmissão de imagens, as viagens aéreas de drones e projectos mirabolantes da mudança de  todo clima planetário  há hoje entre nós tecnologias que não tivessem antecipado. “Sans dessus dessous” imaginava incríveis mudanças climáticas do planeta, aplainado os póos, elevando os Açores ou as Bermudas ao alto dos Himalaias e criando um clima idílico global…
O atentado sofrido por Júlio Verne por um doente mental,ia-lhe causandoa morte tornando-o quase inválido mastrouxe a paz para a família. Quando Júlio morreu, em 1905, as relações eram amigáveis e colaboravam já em algumas histórias.Michel tornava-se escritor editando os muitos dos manuscritos deixados pelo pai, muito embora reescrevesse num estilo próprio com maior intervenção dos personagens.
 Comparando os manuscritos originais de Júlio Verne, com as muitas versões publicadas após sua morte, os pesquisadores modernos descobriram que Michel fez muito mais do que editá-los. Quase todos foram reescritos inteiramente –reformulou os enredos, acrescentou personagens complexos e deu maior dramatismo aos episódios. A reação académica a essas descobertas foi contraditória. A juventude turbulenta de Michel Verne deu-lhemúltiplas experiências que lhe moldaram e enriqueceram a personalidade. No final da vida as suas obras ganharam um estilo próprio.
    A última fase das publicações de Júlio Verne, de 1905 a 1919, é o período  de Verne, filho, quando suas obras póstumas foram publicadas - depois de substancialmente reformuladas. Incluíam “O Vulcão de Ouro” (1906), com a censura pela cobiça e “febre do ouro ”“A Agência de Viagens Thompson & Co”. (1907 , com curiosos episódios nos Açores, entre sismos, procissões e roubos. Em “O segredo de Wilhelm Storitz (1910 retoma o tema da descoberta de um líquido tornava as pessoas invisíveis, o que acontece com a heroína Myra a quem Michel deu um final feliz. Muito sombrio e pessimismo quanto ao futuro, “A espantosa aventurem da missão Barsac”, foi das obras mais sombrias e pessimistas que redigiu
 Alguns críticos condenam essas obras póstumas; outros vêem-nas como uma parte legítima de Júlio Verne e da colaboração do seu filho. O debate continua…
Durante o século 20, traduziram-se para mais de 140 idiomas, sendo um dos escritores mais lidos. A sua imaginação inspirou tanto cientistas como escritores, alertando para os riscos das sociedades desenvolvidas criarem um público ávido de novos mundos distópicos, gradualmente asfixiantes e massificação do “pensamento único”.
São espantosas as investigações que prosseguem por centros e portais dedicados apenas à sua vida e fundamentalmente a obra e encontramos um verdadeiro formigueiro de pesquisadores, centros vernianos, pedagógicos, estudos e teses, críticos que mostram como a sua obra é sempre um futuro no presente. Apenas em Portugal não encontrámos biografias de Júlio Verne, daí a nossa modesta contribuição
   Em   1999, os   cientistas,  Sokal e Bricmont, denunciara o uso falsamente científicos de eminentes intelectuais numa comunicação científica, que redundou em escândalos “intelectuais. Sokal e Bricmont insurgiram-se contra as extrapolações indevidas de Lacan e freudianos, a Kristeva, na semiótica e teoria do signo, Lévêque, Baudrillard e outros que usaram, com extrapolação indevida, diversos conceitos e termos científicos tirados do contexto, sem justificação de tal conduta –(…) sem base argumentativa – que lançavam  os ingénuos leitores em confusões de termos próprios do linguagem científico. (Sokal e Bricmont, 1999, p. 14, tradução nossa).  “apontam para os trabalhos dos físicos cujas teorias não podem ser extrapoladas sem o indispensável rigor racionalista.
    Em definitivo, as denunciadas “imposturas pós-modernas apoderam-sede terminologias que ignoram o rigor científicos, apossando-se das ciências naturais adaptando-as a esoterismos e conhecimentos transcendentais  que Verne ocultaria nas suas obras, numa catadupa de termos culturais num contexto totalmente contraditórios para espantar o leitor ignorante e plena indiferença dos conceitos científicos. Contrariando contraria o ‘relativismo epistemológico”, (…) segundo o qual a ciência moderna não é mais que um “mito”, uma “narração” ou uma “construção” foi demonstrado o mau uso mau uso da ciência no pós-modernismo, a corrente intelectual caracterizada pela rejeição mais ou menos explícita da tradição racionalista das “Luzes”.
    Além da denúncia da linguagem científica dos  pós-modernistas, os cientistas Sokal e Bricmont atacam o relativismo característico da modernidade  pela ideia de que não há nada de essencialmente verdadeiro, incluindo a ciência moderna; ela só seria nosso mito actual e favorito, sem qualquer valor objetivo ou universal.
     Com a morte de Michel em 1925, o capítulo final do legado literário de Júlio Verne estava mais ou menos completo. No ano seguinte, o editor americano Hugo Gernsback homenageava a primeira revista literária apresentando contos de “ficção científica” que hoje em dia se espalhou em massa pelo mundo inteiro. A ficção científica, devido ao abuso da sua massificação mostra mundos violentos e agressivos até para jogos infantis. As maravilhas das tecnologias mostram mais espetáculos aterradores do que uma racionalidade para bem do planeta.
Comparando os estudos sobre Verne estestornam-se  bemcontraditórios devido às reflexões dos críticos literários e científicos. A criação verniana foi a de um mundo imaginário, repleto deantecipações  e de construções , sempre racionalista e resultantes de árduas investigações da relação do homem, do mar e da máquina através dos tempos. Muito do que inventou ainda é um amanhã por atingir.
Se a leitura de Verne em Portugal vem do passado, visando um público juvenil, hoje a sua presença em Portugal não tem merecido o devido relevo para um público mais vasto. A sua antecipação, sempre com rigor e conhecimentos racionalistas, alerta para os riscos da destruição em massa de animais e das reservas ecológicas que já previstas.
O exercício imaginário actual aproxima-se da ficção negativista que as crianças encontram em profusão e estupidifica os adultos com fantásticos e aterradores poderes da Máquina sobre o Homem.Na antecipação científica encontramos filósofos e pensadores que avisam dos riscos das distopias. De Zamyatin, dissidente russo, o nosso mundo já é uma presença “Nós” daí surgir Orwell, Huxley, e uma série de filósofos que usam a ficção para denunciar as suas ideias acerca do mundo real.Rayer, e o seu mundo de vidro,‎Malcolm, McDowell e,  num dos melhores entre filósofos, Ray Bardbary, inesquecível em Fahrenheit 451 conquistam uma legião de mundos imaginários que já se realizam.   
Verne lembrava que  “O que um homem pode imaginar, outro um dia será capaz de alcançar” A tradição de filósofos que usam pseudónimos para publicação das suas teses aumenta sempre como forma de serem escutados. A antecipação científica tornou-se num meio de alertar os leitores para visões de um futuro em que a máquina dominara a Humanidade. O futuro que o passado descreve não se determina pelo nosso minúsculo presente.


Bibliografia Consultada:
Nota: Sokal e Bricmont acerca das ambiguidades dos críticos- Quando uso uma palavra” disse Humpty Dumpty em tom desdenhoso, “ela significa apenas o que escolhi que significasse - nem mais nem menos” (Carroll, Lewis. Through the looking-glass. New York: Editora Oxford University Press, 2009., p. 32, Tradução e grifos nossos)
https://www.portaldaliteratura.com/livros.php?livro=3660https://fr.wikipedia.org/wiki/_l%27%C5%93uvre_de_Jules_Verne
#portaldaliteratura#JúlioVerne  #Verne #Datas
https://fr.wikipedia.org/wiki/Jules-Verne Style_et_structure_narrative
Dupuy. Lionel Un autre regard sur les Voyages Extraordinaires,
Le Lay. Colette, Jules Verne, Un lanceur d’alerte dans le meilleur des mondes, L’Harmattan, coll. Histoire, textes, sociétés , 2019
Charles, Noel-Martin, Jules Verne, sa vie et son œuvres, Lausanne, Rencontre, 1971

Share

Print

Theme picker