A entrada precoce das crianças no 1.º ano de escolaridade: há lugar à voz dos profissionais de educação?
Diário dos Açores

A entrada precoce das crianças no 1.º ano de escolaridade: há lugar à voz dos profissionais de educação?

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Os Açores não são a exceção. Há crianças a entrarem para o 1.º Ciclo do Ensino Básico (CEB) com apenas cinco anos de idade, porque se entende como prioridade a sua escolarização, quando, na verdade, a urgência passa pelo acesso a contextos de brincadeira promotores de uma aprendizagem de sucesso na leitura, na escrita e no cálculo emergentes. Considerando que esta situação recorrente é uma das que mais condicionam o sucesso da aprendizagem de centenas (ou até mesmo milhares) de crianças nesta Região, é, pois, imperativo que nos questionemos acerca desta precipitação parental. Como tal, neste artigo, é dado espaço à expressão daquele que é o nosso entendimento relativamente a uma questão que tem sido continuamente desvalorizada no enquadramento político regional, por dependência às determinações vinculadas nacionalmente.
Comecemos, pois, por considerar um facto incontornável: nós vivemos numa época marcada por alterações de ordem diversa, cujos efeitos não podem ser ignorados por parte daqueles que têm responsabilidade educativa e sociopolítica na atualidade. Se, até ao presente momento, tem chegado, junto das entidades com poder de decisão, aquela que é a maior das angústias dos educadores de infância e dos professores do 1.º CEB, interrogamo-nos, permanentemente, acerca de uma indiferença que tende a prevalecer! Mas por que razão não se dá lugar à inclusão do parecer daqueles que, diariamente, se veem confrontados com um problema que determina, fortemente, o sucesso da aprendizagem dos alunos? Por que razão não se dá o reconhecimento do saber de especialidade dos profissionais de educação que lidam com uma condicionante cuja força se reflete, de forma expressiva, no insucesso da aprendizagem da leitura, da escrita e do cálculo no 1.º ano de escolaridade?
Ao contrário do que se desvaloriza, todo o tempo de vida de uma criança se reflete nas aquisições que realiza ao longo das diferentes etapas do seu desenvolvimento. Como tal, ter seis anos de idade até ao dia trinta e um de agosto não é necessariamente semelhante a perfazer a mesma idade entre os meses de setembro e dezembro do mesmo ano. Durante os primeiros anos de crescimento das crianças, todos os dias, semanas e meses contam! Porque todos os dias acontecem aprendizagens! Como tal, independentemente de uma maior ou menor consciência de que o desenvolvimento das crianças se realiza de uma forma diferenciada, a presente realidade obriga que seja realizada uma revisão do quadro legal em vigor.
Não querendo entrar na lógica de sobrevalorização da eficácia das políticas aplicadas noutros países, interroguemo-nos antes acerca do que está, efetivamente, na base da convenção de que a entrada de alunos no 1.º ano de escolaridade deve ocorrer apenas quando a criança já fez seis anos de idade. Não se relaciona com os contributos dados pelas neurociências, nas últimas décadas, e, complementarmente, pelas investigações realizadas ao nível da iniciação à aprendizagem da leitura? Por exemplo, nos Estados Unidos da América, cujo sistema privilegia a organização do ensino em função da idade dos alunos, só é autorizada a entrada de uma criança no 1.º ano quando já completou seis anos. Considerando a realidade europeia, entre os países nórdicos, mais precisamente a Finlândia, é possível observar que sobressai a tendência de os pais optarem por esperar mais um ano para a entrada dos filhos no 1.º ano, uma realidade factual que se opõe à frequentemente identificada na nossa Região. Nesta última situação, transparece em que medida a variável de foro cultural se reflete numa decisão que determinará, grandemente, o sucesso educativo do próprio sistema.
Comummente, quando exposta esta situação problemática de entrada precoce no 1.º CEB àqueles que, hierarquicamente, na esfera educativa, têm voz e responsabilidade ativas (ou, pelo menos, deveriam ter!), obtêm-se respostas semelhantes que não dependem sequer de questões de força partidária: vós, educadores e professores, tendes a obrigação de criar condições facilitadoras de aprendizagem junto das crianças / dos alunos de risco identificados, por meio de uma avaliação diagnóstica. A nossa indignação é sofrida! Ou melhor, a revolta sentida é tremenda, porque esta é uma realidade que se arrasta neste país e, particularmente, nesta Região, há décadas! E porquê? Porque, para nós, não faz nenhum sentido que um aluno seja identificado à entrada no 1.º CEB como uma criança de risco, quando, na maioria das situações, mais um ano de aprendizagem na Educação Pré-escolar poderia representar uma oportunidade efetiva ao desenvolvimento das competências facilitadoras à aprendizagem da leitura, da escrita e do cálculo!
Perante uma abordagem que reflete ausência de implicação, eis aquilo que se pode designar lembrete: por acaso, vós, decisores educativos, com influência e/ou poder político, estais conscientes de que uma criança com dificuldades no processo inicial de alfabetização se depara, nos anos seguintes, com muitos outros obstáculos, tendo em conta que o domínio da língua portuguesa se apresenta como a chave para o seu sucesso educativo? Nós, educadores e professores, jamais nos resignaremos à resposta que, recorrentemente, nos tem sido dada, porque, enquanto profissionais munidos de conhecimento de especialidade, não podemos aceitar que esta questão continue a ser ignorada na esfera de decisão política regional e nacional.
Entretanto, enquanto nada é mudado no enquadramento legislativo atual, não cabe à tutela educativa açoriana organizar e dinamizar ações esclarecedoras junto dos pais e encarregados de educação? Isto porque, como tão bem sabemos, apesar dos esforços realizados turma a turma, por parte dos seus respetivos educadores de infância, no sentido de explicitarem, junto dos pais e encarregados de educação, que a alfabetização precoce dos filhos não constituirá uma oportunidade gratificante de aprendizagem, a verdade é que, na maioria dos casos, tal aconselhamento é ignorado. Perante tal, que sentimento tem sido gerado nos nossos educadores de infância? Ora bem, o que se apura é que, atualmente, se sente o jardim de infância como um palco, onde não há rei nem roque, no que se refere à validade conferida à avaliação realizada, por parte dos educadores de infância, no que toca às competências facilitadoras da aprendizagem da leitura, da escrita e do cálculo, porque, afinal, os pais são os decisores finais. Estes, na sua ânsia de pôr a carroça à frente dos bois, acabam por condenar, muitas vezes, embora sem intencionalidade, os filhos a um percurso escolar marcado por dificuldades que põem em evidência o quanto tinha sido necessário que tivessem vivenciado, questionado, testado, e confirmado experiências de ordem diversa, cuja utilidade é determinante, em fases seguintes, ao seu sucesso educativo! Portanto, chegou o momento de investirem em medidas diversas (campanhas de sensibilização, usando meios de comunicação da Região, por exemplo, a televisão; sessões formativas de curta duração…), cujos destinatários sejam os pais de crianças/alunos de quatro e cinco anos, de modo que se avance para a mudança do paradigma das matrículas precoces!
Como temos vivido? Temos antes sobrevivido num regime de alfabetização precoce, que põe em evidência em que medida uma norma vinculada legalmente se reflete, negativamente, no percurso escolar de tantas, tantas crianças. Não se está, pois, a esquecer que a ausência de discussão deste problema se traduz na condenação de crianças a um percurso de vida de insucesso? Ou não se tomou ainda consciência de que o insucesso educativo se traduz em infelicidade para aqueles que dele padecem!? Todos nós, intervenientes educativos e/ou políticos, temos responsabilidades sociais; como tal, façamos uso do poder que temos, para bem de, conjuntamente, colaborarmos na resolução de uma situação cujo diagnóstico obriga à ação! Estamos cansados da indiferença gerada, mas não calados, pois, falar-se de insucesso educativo, descurando-se o que, em muitos casos, está no começo da sua afirmação, é ignorar-se o quão fácil pode ser, por vezes, mudar-se o que de tão problemático também está na sua génese!

*Investigadora em Educação, na especialidade de Dificuldades da Aprendizagem Específicas
*Investigadora em Educação e em Estudos Portugueses, na especialidade de Linguística Portuguesa

 

Rita Bonança*

Odília Machado*

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