O Natal do Menino morreu

O Natal do Menino morreu

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O tempo corre muito depressa e não há como deter as horas mais luminosas destes dias de outono.
A quatro semanas do Natal, a Festa não tem o mesmo enlevo de antigamente. Falta-lhe a imprevisibilidade que alimentava a nossa espetativa até que se abriam os presentes. Até os ornamentos das casas, usados ano após ano, pouco inovam, não fossem eles produzidos em larga escala pela indústria chinesa, para uma sociedade de consumo, cada vez mais indiferente às verdadeiras motivações da Festa Cristã.
O nascimento do Menino Jesus que a cultura e a tradição popular cristãs relevava fosse nas novenas do Natal, nos Altarinhos do Menino, ou nas figuras do presépio, só se mantém, com devoção e respeito nas zonas rurais mais cristianizadas.
Nas sociedades urbanas e laicas, os símbolos blíblicos natalícios são substituídos por outros que, propositadamente ou não, desvirtuam o anúncio do nascimento do Salvador.
Enfeita-se cidades e vilas com luzes e adornos multicolores, mas as decorações não geram felicidade e transmitem uma alegria efémera. Valem apenas para atrair transeuntos abonados ao comércio, gerar o consumismo e gastos supérfluos, mas não promovem nem a sã convivência entre os homens, nem  a paz.     
Assim vamos nós, num rodopio cansativo, preparando o Natal, com mais ou menos convicção religiosa.
De há anos para cá é habitual, nesta quadra, apelar-se à partilha com os mais necessitados, como se a pobreza tivesse abrandado ou desaparecido. Assim não é, de fato.
As estatísticas comprovam-no e os governantes para demonstrarem sensibilidade aos problemas sociais, confessam a importância do problema e a necessidade urgente de o resolver. Mas ficam-se por aí.   
A má distribuição dos bens, mantém-se porque o modelo económico capitalista que seguimos gera constantes e crescentes distorções sociais, um número incontável de pobres, de famintos, de doentes e de desempregados, impedindo-os de aceder aos bens da humanidade.
Paulo VI na encíclica Populorum Progressio, confirma esta análise quando afirma:“Construiu-se um sistema que considerava o lucro como motor essencial do progresso económico, a concorência como lei suprema da economia, a propriedade privada dos bens de produção como direito absoluto, sem limite nem obrigações sociais correspondentes”(26).
O resultado é que, com estas leis económicas seguidas pelas economias mais desenvolvidas, apesar dos apelos em contrário repetidos por organizações e personalidades de reconhecido mérito, “são muitos os homens que sofrem, e aumenta a distância que separa o progresso de uns da estagnação e, até mesmo, do retrocesso de outros.”(PP.29)
Ainda recentemente, a responsável pelo Banco Alimentar contra a Fome apelou, uma vez mais,  à doação de géneros alimentícios, para que 500 famílias micaelenses tenham alimentos sobre a mesa. Outras instituições identicas promovem campanhas de angariação de géneros para acorrer às necessidades de um número cada vez maior de famílias carenciadas, dos sem-abrigo e de tanta pobreza envergonhada, escondida de portas adentro, que vasculham nos caixotes do lixo o supérfluo de mesas abastadas. e a quem não chegam os apoios disponíveis de programas da UE.
A resposta a estas questões que afeta largas faixas da população açoriana e micaelense, pode fazer parte das preocupações de governantes e políticos. No entanto, é bem patente a ineficácia dos seus projetos e ações, para o que contam com apoios da União Europeia destinados a dignificar os cidadãos.
É um contrasenso, neste período de dificuldades de vária ordem, observar os gastos com as ornamentações públicas e iluminações noturnas, quando as ruas mantém-se praticamente desertas. Disperdiçar dinheiros públicos para esses enfeites que deveriam ser colocados ao serviço de uma larga faixa da população carenciada (cerca de 25%) e que também tem direito a uma vida digna, é uma decisão que contraria o bem-comum e a promoção da justiça e da igualdade.
Peditórios na quadra natalícia apelando à solidariedade do cidadão comum, desvinculando a obrigação de quem nos governa de executar projetos para minimizar as desigualdades sociais, são a melhor prova de que a pobreza continua a ser um parente pobre dos governos.
Dá até a impressão de que o objetivo é não resolver o problema para manter a dependência entre os que tudo podem e os que pouco ou nada têm.
Estes procedimentos, cada vez mais generalizados, impedem a dignificação do ser humano, afasta os mais pobres da participação cívica e empobrece e bipolariza a própria sociedade que deveria envolver todos no processo de desenvolvimento comum.
Há algumas décadas, o Papa Paulo VI disse-o por outras palavras: “Quando tantos povos têm fome, tantos lares vivem na miséria, tantas escolas, hospitais e habitações, dignas deste nome, ficam por construir, torna-se um escândalo intolerável qualquer esbanjamento público e privado, qualquer gasto de ostentação nacional ou pessoal.”( PP 53).
Enquanto as situações de pobreza não ultrapassarem as questões da subsistência precária, as sociedades não estarão a contribuir para o desenvolvimento do género humano, mas apenas para conter os conflitos sociais, a discriminação racial e as carências alimentares.
Há que alterar o paradigma e construir uma sociedade que envolva todos os homens num projeto comum que trate todos por igual, e tendo “a fraternidade como valor mais necessário do que nunca. Não uma fraternidade feita de ideais abstratos, mas baseada no amor real, capaz de compadecer-se dos sofrimentos alheios, mesmo que o outro não seja da minha família, da minha etnia, da minha religião.” (1)
É para este peditório que apelo, tendo em vista diminuir o elevado cortejo de carenciados, de quem não cuidamos por egoismo, incompetência, ou insensibilidade social.
Dar para transformar.
        
http://escritemdia.blogspot.com


1 Mensagem de Natal de 2020 do Papa Francisco

*Jornalista c.p.239 A

 

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