De regresso  à normalidade
Maria Luísa Soares

De regresso à normalidade

Previous Article Previous Article Rui Rio enfrenta o maior desafio da sua vida política
Next Article Programação de Natal em P. Delgada  com várias animações esta semana Programação de Natal em P. Delgada com várias animações esta semana

Tudo parece diminuir, tudo parece encurtar nestes primeiros dias de outono.
     É o que sente quem acaba de chegar de férias prolongadas e dos dias elásticos do verão. A pressa com que o tempo nos rouba as horas costumeiras do que devia ser um dia normal e nos  encaminha para um entardecer antecipado. Nada a fazer. Há que aprender a viver com o horário de inverno e com a nostalgia deste tempo novo.
    Bocejante e nostálgica acomodava-me  eu nesta Lisboa dos meus regressos, quando inesperadamente o telefone toca.
     _ Luísa, não vais acreditar!, era a Ilda. A ilda não era pessoa de muitas conversas telefónicas e muito menos de começar um telefonema de forma tão assarapantada.
No meu deambular pelos vários recantos da ilha, a Ilda tinha-se tornado companhia assídua. Não porque fosse criatura virada para qualquer espécie de vadiagem, não. Ela era até de muitas quietudes caseiras e de uma timidez que lhe coartava iniciativas, daquelas com que às vezes uma pessoa forja um destino.  Reformada e sem família, tinha os dias preenchidos com os cuidados que lhe mereciam os três gatos que acolhera, todos diferentes e todos a merecerem-lhe estórias que ela se comprazia em contar com detalhes minuciosos e ternurentos.
  Em alternância com as estórias dos gatos acontecia virem outras estórias, estas de carácter mais pessoal e intimista. Em relação às últimas manda a verdade que se diga que a Ilda sentia necessidade de um ouvinte. As pessoas tinham-se habituado a ver nela um ser sem história de uma passividade desinteressante  e aceitavam como atributos adequados o estrabismo do olho esquerdo, bem como o volume quase disforme que era o daquele peito num corpo tão pequeno. As feições miúdas e a tez clara e rosada eram atributos de que ela se orgulhava quando tinha oportunidade. Mas a Ilda tinha uma história, como toda a gente: era uma professora reformada e antes disso tinha pairado aqui e ali em alguns empregos temporários, até que a mãe um dia resolveu que o destino da filha havia de ser professora e não descansou enquanto a Iria não tirou  o curso já quarentona.
Mulher de iniciativas díspares, também achou que tiraria bom proveito se alugasse um quarto da casa situada perto do Liceu, pois que a vida não estava fácil para ninguém. O marido, um pacato sapateiro, embora achasse que sim, o dinheiro dava jeito, nem era consultado para semelhantes arrojos, conhecendo-se-lhe já a discordância deles.
A Ilda tinha herdado o feitio do pai e deixava-se guiar e orientar pelas regras de vida que diariamente a mãe lhe impunha. Começou como aluna externa o fadário do caminho que a levaria ao estatuto de prof. primária e, como tal, foi conhecendo gente vária, gente estudante como ela. E cedo se apercebeu da existência de um moço que de vez em quando aparecia por lá, e que não ignorava a existência dela. Pelo contrário: olhava-a com uma insistência a que não estava habituada. Não eram colegas, isso percebeu ela. Ele andava mais adiantado e vinha para a explicação que iria seguir-se.
   Das  primeiras vezes, mal chegava a casa fechava-se no quarto e punha-se a observar-se demoradamente nos diversos ângulos que o espelho lhe oferecia: que veria ele nela?, achá-la-ia parecida com alguém em especial? E que quereria ele dela: namorar?, e talvez casar? Mas foram interrogações às quais nunca encontrou resposta. Caiu foi nas malhas de uma perplexidade incómoda, um enleio parvo e ruborizado sempre  que dali em diante o via. Ele apercebeu-se do efeito que andava a causar-lhe e redobrou de insistência, uma insistência divertida.
Contou-me a Ilda da felicidade daqueles tempos em que nenhum deles assumiu namoro que se visse: era só a platonice dos olhares de ambos e o receio dela de estar a fazer algo que não devia. Falou-me ainda do espanto assustado que sentiu quando soube que a mãe estava a par de tudo e a ameaçou de mudar de explicador se ela não se soubesse “dar ao respeito.”
A vida foi acontecendo, as oportunidades de aproximação nunca se concretizaram, com a mãe sempre de permeio e ele sem nunca ousar um passo decisivo. “A família dele nunca gostou de mim, logo eu a filha de um obscuro sapateiro. No futuro que lhe previam eu não entrava”.
  E tu, que é que querias? Não gostavas dele?, eu a tentar perceber os mistérios do coração humano.
Mas a Ilda escusa-se sempre que lhe faço esta pergunta. Quando muito diz-me que nunca teria ido contra a vontade da mãe nem dos pais dele: “não teria força, e se calhar não nasci para me casar”.
Ela acredita no destino, Deus meu. Nestas alturas não tinha mão em mim e dizia-lhe coisas que a faziam  embatucar, afogueada e sem encontrar palavras que me contradissessem.
   De tudo isto me vou lembrando, enquanto vou deglutindo o efeito que me causou o telefonema da Ilda. Mas para quê anteciparmo-nos? Prefiro dar voz àquilo que, durante os passeios  ela me ia contando, episódios alternados com outros dos bem-amados gatos.
   O desenrolar da vida da Ilda ia acontecendo sem nada que merecesse registo especial: nem    a ameaça de mudar de explicador se concretizou, nem a própria Iria ousou transgredir as regras de vida impostas pela mãe. Do Eduardo (chamemos-lhe assim) é que se poderia assinalar um percurso recheado de surpresas, pois que acabou inscrito no seminário em preparação de futuro padre. A família rejubilou, informa-me a Ilda, acrescentando que o futuro padre continuava um mistério por decifrar. Era isto pelo menos o que ela via nele, pois que quando naqueles acasos de ilha a encontrava não disfarçava o mesmo interesse de antigamente. Ela achou que com coisas sérias não se brinca ( ele tinha metido Deus de permeio) e esforçou-se então por cirandar bem longe dele, e com isto, varrê-lo da vidinha estreita de ilha e dos sonhos que alimentava à noite.    
Sim, tinha havido outras oportunidades com outros, mas nada digno de assinalar. Nem sequer de contar.
 E dia após dia, ia-se dedicando a cumprir escrupulosamente o que esperavam dela. Tudo se consumou quando ele acabou por se ordenar padre. E foi também quando descobriu como certos animais, os cães e os gatos, eram fontes de afecto. Uns seres inofensivos, que muitas vezes não tinham o tratamento que mereciam. Tornou-se sócia da Associação protectora dos animais, e ao longo do tempo foi adquirindo alguns que se tinham tornado numa rica companhia. Só lhes faltava falar. Se não tinha mais era porque a casa era pequena. E aqui estava uma Ilda feita coração mole com os animais e céptica com as pessoas.
    Quem aceita o comportamento parvo de certas pessoas?
  Mas aquele telefonema, senhores.  Aí vai o que ela me contou. A Ilda era uma católica fervorosa de missa e comunhão frequentes e, vai daí, uma tarde sensaborona sem nada melhor que fazer, resolve ir às compras: nunca era demais renovar a areia onde os gatos faziam as suas necessidades e talvez até  abastecer-se também  de comida para eles. Assim o fez. Mas cumprida a obrigação não lhe apeteceu voltar de imediato para casa. A igreja que lhe ficava no caminho, estava mesmo a pedir-lhe uma visitinha. Curta porque os gatos eram ciosos da presença dela só para eles.
   E estavam a confessar, ainda por cima. Pôs-se perto do confessionário. Sabiam-lhe bem as confissões, embora se acusasse quase sempre do mesmo: maus pensamentos, laivos de inveja em relação a certas pessoas, sendo estes até bem justificados. Também lhe davam quase sempre a mesma penitência.
  Quando chega a vez dela, ajoelha-se,  benze-se contrita e dispõe-se a enumerar as suas fraquezas. Mas como como não viesse nenhum sinal de incentivo do lado de lá, perscrutou o confessor, pois que não era normal aquela ausência, aquele comportamento, não senhor, aquele não estava a fazer o seu papel. E com quem depara ela? Já adivinharam. Pois, com ele mesmo, o Eduardo feito padre-confessor ali a aparar-lhe misérias.
    ___E tu, que fizeste?
   ___ Ah minha amiga, sofri cá um abalo, nem imaginas, esteve quase a dar-me uma coisa! Estava sem forças para nada. E do lado de lá ele só me dizia Calma, calma… Mas acabei por me levantar e desabar num choro descontrolado  que só me trouxe alívio.  Escusado será falar do espanto que causei à volta.
Imaginemos este espanto a alastrar e a germinar e a dar origem às mais diversas suposições. Daquelas que têm terreno propício numa ilha.
Quanto à Ilda, pode dizer-se que o episódio teve o mérito de contribuir para o desvanecimento das ideias românticas que ainda subsistissem  sobre o Eduardo de outros tempos.

 

Share

Print

Theme picker