Tudo parece diminuir, tudo parece encurtar nestes primeiros dias de outono.
É o que sente quem acaba de chegar de férias prolongadas e dos dias elásticos do verão. A pressa com que o tempo nos rouba as horas costumeiras do que devia ser um dia normal e nos encaminha para um entardecer antecipado. Nada a fazer. Há que aprender a viver com o horário de inverno e com a nostalgia deste tempo novo.
Bocejante e nostálgica acomodava-me eu nesta Lisboa dos meus regressos, quando inesperadamente o telefone toca.
_ Luísa, não vais acreditar!, era a Ilda. A ilda não era pessoa de muitas conversas telefónicas e muito menos de começar um telefonema de forma tão assarapantada.
No meu deambular pelos vários recantos da ilha, a Ilda tinha-se tornado companhia assídua. Não porque fosse criatura virada para qualquer espécie de vadiagem, não. Ela era até de muitas quietudes caseiras e de uma timidez que lhe coartava iniciativas, daquelas com que às vezes uma pessoa forja um destino. Reformada e sem família, tinha os dias preenchidos com os cuidados que lhe mereciam os três gatos que acolhera, todos diferentes e todos a merecerem-lhe estórias que ela se comprazia em contar com detalhes minuciosos e ternurentos.
Em alternância com as estórias dos gatos acontecia virem outras estórias, estas de carácter mais pessoal e intimista. Em relação às últimas manda a verdade que se diga que a Ilda sentia necessidade de um ouvinte. As pessoas tinham-se habituado a ver nela um ser sem história de uma passividade desinteressante e aceitavam como atributos adequados o estrabismo do olho esquerdo, bem como o volume quase disforme que era o daquele peito num corpo tão pequeno. As feições miúdas e a tez clara e rosada eram atributos de que ela se orgulhava quando tinha oportunidade. Mas a Ilda tinha uma história, como toda a gente: era uma professora reformada e antes disso tinha pairado aqui e ali em alguns empregos temporários, até que a mãe um dia resolveu que o destino da filha havia de ser professora e não descansou enquanto a Iria não tirou o curso já quarentona.
Mulher de iniciativas díspares, também achou que tiraria bom proveito se alugasse um quarto da casa situada perto do Liceu, pois que a vida não estava fácil para ninguém. O marido, um pacato sapateiro, embora achasse que sim, o dinheiro dava jeito, nem era consultado para semelhantes arrojos, conhecendo-se-lhe já a discordância deles.
A Ilda tinha herdado o feitio do pai e deixava-se guiar e orientar pelas regras de vida que diariamente a mãe lhe impunha. Começou como aluna externa o fadário do caminho que a levaria ao estatuto de prof. primária e, como tal, foi conhecendo gente vária, gente estudante como ela. E cedo se apercebeu da existência de um moço que de vez em quando aparecia por lá, e que não ignorava a existência dela. Pelo contrário: olhava-a com uma insistência a que não estava habituada. Não eram colegas, isso percebeu ela. Ele andava mais adiantado e vinha para a explicação que iria seguir-se.
Das primeiras vezes, mal chegava a casa fechava-se no quarto e punha-se a observar-se demoradamente nos diversos ângulos que o espelho lhe oferecia: que veria ele nela?, achá-la-ia parecida com alguém em especial? E que quereria ele dela: namorar?, e talvez casar? Mas foram interrogações às quais nunca encontrou resposta. Caiu foi nas malhas de uma perplexidade incómoda, um enleio parvo e ruborizado sempre que dali em diante o via. Ele apercebeu-se do efeito que andava a causar-lhe e redobrou de insistência, uma insistência divertida.
Contou-me a Ilda da felicidade daqueles tempos em que nenhum deles assumiu namoro que se visse: era só a platonice dos olhares de ambos e o receio dela de estar a fazer algo que não devia. Falou-me ainda do espanto assustado que sentiu quando soube que a mãe estava a par de tudo e a ameaçou de mudar de explicador se ela não se soubesse “dar ao respeito.”
A vida foi acontecendo, as oportunidades de aproximação nunca se concretizaram, com a mãe sempre de permeio e ele sem nunca ousar um passo decisivo. “A família dele nunca gostou de mim, logo eu a filha de um obscuro sapateiro. No futuro que lhe previam eu não entrava”.
E tu, que é que querias? Não gostavas dele?, eu a tentar perceber os mistérios do coração humano.
Mas a Ilda escusa-se sempre que lhe faço esta pergunta. Quando muito diz-me que nunca teria ido contra a vontade da mãe nem dos pais dele: “não teria força, e se calhar não nasci para me casar”.
Ela acredita no destino, Deus meu. Nestas alturas não tinha mão em mim e dizia-lhe coisas que a faziam embatucar, afogueada e sem encontrar palavras que me contradissessem.
De tudo isto me vou lembrando, enquanto vou deglutindo o efeito que me causou o telefonema da Ilda. Mas para quê anteciparmo-nos? Prefiro dar voz àquilo que, durante os passeios ela me ia contando, episódios alternados com outros dos bem-amados gatos.
O desenrolar da vida da Ilda ia acontecendo sem nada que merecesse registo especial: nem a ameaça de mudar de explicador se concretizou, nem a própria Iria ousou transgredir as regras de vida impostas pela mãe. Do Eduardo (chamemos-lhe assim) é que se poderia assinalar um percurso recheado de surpresas, pois que acabou inscrito no seminário em preparação de futuro padre. A família rejubilou, informa-me a Ilda, acrescentando que o futuro padre continuava um mistério por decifrar. Era isto pelo menos o que ela via nele, pois que quando naqueles acasos de ilha a encontrava não disfarçava o mesmo interesse de antigamente. Ela achou que com coisas sérias não se brinca ( ele tinha metido Deus de permeio) e esforçou-se então por cirandar bem longe dele, e com isto, varrê-lo da vidinha estreita de ilha e dos sonhos que alimentava à noite.
Sim, tinha havido outras oportunidades com outros, mas nada digno de assinalar. Nem sequer de contar.
E dia após dia, ia-se dedicando a cumprir escrupulosamente o que esperavam dela. Tudo se consumou quando ele acabou por se ordenar padre. E foi também quando descobriu como certos animais, os cães e os gatos, eram fontes de afecto. Uns seres inofensivos, que muitas vezes não tinham o tratamento que mereciam. Tornou-se sócia da Associação protectora dos animais, e ao longo do tempo foi adquirindo alguns que se tinham tornado numa rica companhia. Só lhes faltava falar. Se não tinha mais era porque a casa era pequena. E aqui estava uma Ilda feita coração mole com os animais e céptica com as pessoas.
Quem aceita o comportamento parvo de certas pessoas?
Mas aquele telefonema, senhores. Aí vai o que ela me contou. A Ilda era uma católica fervorosa de missa e comunhão frequentes e, vai daí, uma tarde sensaborona sem nada melhor que fazer, resolve ir às compras: nunca era demais renovar a areia onde os gatos faziam as suas necessidades e talvez até abastecer-se também de comida para eles. Assim o fez. Mas cumprida a obrigação não lhe apeteceu voltar de imediato para casa. A igreja que lhe ficava no caminho, estava mesmo a pedir-lhe uma visitinha. Curta porque os gatos eram ciosos da presença dela só para eles.
E estavam a confessar, ainda por cima. Pôs-se perto do confessionário. Sabiam-lhe bem as confissões, embora se acusasse quase sempre do mesmo: maus pensamentos, laivos de inveja em relação a certas pessoas, sendo estes até bem justificados. Também lhe davam quase sempre a mesma penitência.
Quando chega a vez dela, ajoelha-se, benze-se contrita e dispõe-se a enumerar as suas fraquezas. Mas como como não viesse nenhum sinal de incentivo do lado de lá, perscrutou o confessor, pois que não era normal aquela ausência, aquele comportamento, não senhor, aquele não estava a fazer o seu papel. E com quem depara ela? Já adivinharam. Pois, com ele mesmo, o Eduardo feito padre-confessor ali a aparar-lhe misérias.
___E tu, que fizeste?
___ Ah minha amiga, sofri cá um abalo, nem imaginas, esteve quase a dar-me uma coisa! Estava sem forças para nada. E do lado de lá ele só me dizia Calma, calma… Mas acabei por me levantar e desabar num choro descontrolado que só me trouxe alívio. Escusado será falar do espanto que causei à volta.
Imaginemos este espanto a alastrar e a germinar e a dar origem às mais diversas suposições. Daquelas que têm terreno propício numa ilha.
Quanto à Ilda, pode dizer-se que o episódio teve o mérito de contribuir para o desvanecimento das ideias românticas que ainda subsistissem sobre o Eduardo de outros tempos.