A ilha que se tornou continente
Gabriela Silva

A ilha que se tornou continente

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Embaixadores do Azores 2027

“Lentamente, foram chegando mais pessoas animadas pela possibilidade de viver a vida num paraíso terreal, fértil e, mesmo assim, integrado na Europa comum. Os forasteiros gostam de pequenas ruínas, lugares isolados com terra de cultivo e vistas de mar. Os locais foram ganhando dinheiro com as propriedades que vendem e a miscigenação cultural foi acontecendo de forma gradual.” Gabriela Silva, Embaixadora das Flores

 

 

Antigamente eu vivia numa ilha. Tinha muito mais gente do que tem hoje. Mas era muito mais ilha.
Estávamos fechados dentro de um território muito verde e lindo, mas tão isolado que não se sabia nada do lado de lá do mundo. Não havia eletricidade nem água canalizada. Nem a comunicação dentro dela era fácil. As estradas eram canadas que se foram abrindo, com inquietante lentidão, à passagem de outros meios de transporte que não fossem carroças, gorções e carros de bois.
Mas depois começaram a acontecer coisas. Os mais afoitos embarcaram para a América. Mandavam fotos coloridas com o frigorífico cheio de comidas bonitas e vinham sacas de roupa perfumada. O cheiro a América era um tentador de almas inquietas. Outros se seguiram. A ilha ia ficando mais vazia e mais ilha…
Um dia chegaram franceses. Traziam uma língua mais doce, obrigaram a ilha a abrir caminhos, um aeroporto e outras novidades nunca vistas. Havia festas. Não eram para todos, mas havia outra vida. Eles também tinham máquinas fotográficas, controlavam mísseis e havia um charme discreto no secretismo que rodeava uma missão que trouxera gente bonita e bem vestida que agigantaram a ilha de uma forma notável. E todos ganhamos com isso. Alguns casaram com florentinas que rapidamente aprenderam a língua. Tinham uma Base com casas confortáveis, recebiam da França produtos frescos que vinham no Transal na quinta feira de cada mês. Nas sextas feiras ao almoço havia salada verde, abacate com vinagrete e tábua de queijos. No Natal os chocolates ganhavam a pontos todas as outras iguarias.
Nada mais voltou a ser como dantes.
A verdade é que, um dia, eles partiram. Mas já a ilha… nunca mais voltou a ser ilha. Com a entrada na Comunidade Económica Europeia e a adesão ao euro, ficou tudo muito mais claro. O dólar perdeu a vitalidade e a ilha, situada numa posição estratégica conveniente a quem viajava do lado de lá do mundo, passou a ser ponto de paragem de veleiros e desembarque de gente diferente. De início, foram apenas alguns, mas o tempo provou que a ilha valia a pena: terra fértil, paz e sossego, ausência de poluição e uma população habituada a acolher gente estranha, fizeram das Flores um destino apetecível para muitos.
Um dia apareceu o italiano da Fajã, um jovem charmoso que falava uma língua musical e apostou num alojamento turístico que começou a encher. Foi ele que ajudou a rasgar os trilhos que mudaram totalmente de função. Até aí, apenas os agricultores conheciam os acessos antigos e os atalhos que levavam a pastos de onde, cada metro de terra oferecia uma imagem deslumbrante. Pieriluigi, obrigada por teres mostrado aos florentinos que valia a pena viver numa ilha tão ilha.
Lentamente, foram chegando mais pessoas animadas pela possibilidade de viver a vida num paraíso terreal, fértil e, mesmo assim, integrado na Europa comum. Os forasteiros gostam de pequenas ruínas, lugares isolados com terra de cultivo e vistas de mar. Os locais foram ganhando dinheiro com as propriedades que vendem e a miscigenação cultural foi acontecendo de forma gradual.
Hoje, a ilha tem mais de uma centena de estrangeiros de várias nacionalidades. É por isso que é tão difícil ser embaixadora deste continente!!! Brinco, naturalmente, mas a ilha, não sendo mais o que era, abre-se hoje a novas e infinitas possibilidades. O nomadismo digital começou aqui muito antes da pandemia. Com a chegada da fibra, a internet ganhou uma extraordinária velocidade e já são muitos aqueles que trabalham daqui para o mundo, sentados em frente ao mar da ilha que me parecia tão pequenina…
Digo como Alberto Caeiro:

Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo...
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura...

Nada disto acaba aqui. Este é apenas um começo de tudo o que aí vem. Porque são hoje conhecidas as vantagens da pequenez e do silêncio. Porque o tempo nos trouxe novas propostas para as quais esta ilha tem respostas muito interessantes.
Azores 2027, um mundo de infinitas possibilidades em ilhas onde a nossa natureza é, realmente, humana!

 

*Embaixadora da ilha das Flores da candidatura Azores 2027 - Ponta Delgada Capital Europeia da Cultura

 

 

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