O bom mentiroso é aquele que sabe usar os factos para mentir
Joel Neto

O bom mentiroso é aquele que sabe usar os factos para mentir

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Se tens um jardim e uma biblioteca

“Ainda parece quase tudo possível: uma geringonça de esquerda (uma nova, eventualmente a já dita ecogeringonça, ou própria geringonça original); uma traquitana de direita (inevitavelmente com a participação do Chega); e até um Bloco Central (em sede de acordo parlamentar ou, inclusive, de coligação)”

 

1. O que é «ganhar um debate»? O que é «ser mais eficaz»? O que é «passar melhor a mensagem»?
Tenho-me debatido com estas questões a propósito daquela que é a grande novidade na série de debates televisivos a propósito das Legislativas de dia 30, e que são as contas, as eleições e as pontuações médias de jornais, televisões e rádios a pretexto de quem ganhou e quem perdeu cada frente-a-frente. Nomeadamente em função de uma ideia recorrente, repetida por alguns dos muitos que contribuem para essas contas: André Ventura ganhou vários debates – aquele que fez com Rui Rio e vários outros.
Muito claramente: Ventura não ganhou um só destes debates, nunca ganhou qualquer debate a que eu tenha assistido e, tanto quanto se pode prever, nunca ganhará um debate. Por uma razão muito simples: tudo o que diz é mentira. Se não é mentira no conteúdo, é mentira na forma – se não na substância do que diz, pelo menos na motivação com que o diz.O melhor mentiroso é aquele sabe usar os factos para mentir.
Vamos a ver: um debate é uma actividade nobre. É uma troca de ideias, um combate entre propostas. Ventura não tem ideias nem propostas. Não tem mensagem. Nem sequer tem um programa, como o debate com Rui Tavares demonstrou com clareza. Tem uma dezena de temas a pretexto dos quais sabe que pode explorar o que de pior há na natureza humana e na circunstância do país: a revolta, a raiva, o ódio, a inveja, o desdém, o desejo de um ajuste de contas.
Isso torna-o às vezes «mais eficaz», do ponto de vista da agitação que procura como (eventualmente) do ponto de vista eleitoral. Que o torne mais eficaz do ponto de vista do sound bite já exige que os jornalistas se demitam – como o têm feito – da sua função de fiscalizadores da verdade.
Elogiar uma prestaçãodo líder do Chega é como elogiar uma equipa a cujos jogadores fosse autorizado jogar com as mãos. André Ventura joga com as mãos, dá caneladas, deixa os avançados à mama, passa a mão no rabo do árbitro, abre a gabardina às crianças na bancada – e nem um cartão vê. Faz o que se espera dele, e por isso as regras, para ele, são diferentes. Não há limites.
Mas nada disso significa «ganhar um debate», ou sequer «passar a mensagem». É apenas desonestidade. Oportunismo. Demagogia. Irresponsabilidade.

2.Há outras coisas erradas com estes debates. Desde logo o formato de 30 minutos, que não permite uma real troca de ideias: cada interveniente acaba reduzido a 11 ou 12 minutos de intervenção, com o que não pode fazer mais do que explanar duas ou três propostas, defender-se de duas ou três acusações e desferir dois ou três golpes na lógica do adversário. Também isso beneficia Ventura, que assim se pode concentrar nos golpes e nas atoardas.
Depois, são muitos debates. E são muitos canais. E são muitos jornalistas, com estilos e vulnerabilidades diferentes. E depois ainda são muitos comentadores, discutindo (no conjunto dos canais) durante várias horas debates que – repito – duraram 30 minutos. É o mundo ao contrário – o mesmo mundoao contrário que permitiu a Donald Trump e Bolsonaro usarem a televisão para levarem os seus países à desagregação social, à injustiça, à sociopatia, à mesma corrupção que diziam vir para combater e, até, à dizimação pela covid-19.

3.De resto, ainda parece quase tudo possível: uma geringonça de esquerda (uma nova, eventualmente a já dita ecogeringonça, ou a própria geringonça original); uma traquitanade direita (inevitavelmente com a participação do Chega); e até um Bloco Central (em sede de acordo parlamentar ou, inclusive, de coligação).
Rui Rio diz que não fará acordos com o Chega, mas já mudou duas vezes de opinião sobre o assunto. Jerónimo de Sousa e Catarina Martins chumbaram o Orçamento de Estado, mas Jerónimo já levou o seu ralhete – além de que o PCP pode acelerar a transição na liderança – e Catarina sabe que corre o risco de desaparecer.E António Costa recusa uma aproximação a Rui Rio, mas é um mestre da real politik(e, aliás, o PS não se resume a ele).
Não me importo de falar das minhas ponderações enquanto eleitor. Bloco Central, desde já, nem pensar: poderia ser uma boa solução de curto prazo, mas, não havendo duas alternativas ao centro, a médio prazo o descontentamento alimenta os extremos. Traquitana de direita, menos ainda, pelo que explicarei adiante. A possibilidadeque menos me desagrada é também a mais provável: a dita ecogeringonça, com ou sem apoio parlamentar do PCP (ou mesmo do BE). Parece-me a solução menos má, inclusive do que uma eventual – e improbabilíssima, a acreditar nas sondagens – maioria absoluta do PS.
Em geral, eu nunca poderia votar nos partidos que chumbaram o Orçamento de Estado, um gesto desnecessário e inútil, que custou milhares de milhões de euros ao país e o deixou suspensoquando ele menos podia.E, em particular, nunca poderia votar nem na extrema-direita, nem em nenhum dos partidos em que se admite negociar com a extrema-direita (em favor de uma coligação ou mesmo apenas de um acordo parlamentar).
A Iniciativa Liberal, além de todos os demais defeitos, admite até formar governo com o Chega. O CDS está pronto para tudo, em resultado de uma conjugação de forças que já o condenou à extinção: os eleitores ideológicos mudam-se para a IL, os eleitores pragmáticos mudam-se para o PSD, os eleitores enraivecidos mudam-se para o Chega e os bons conservadores (que são o seu único espaço sobrante) estão eles próprios em desaparecimento. E Rui Rio (que não «o PSD», mas pelo menos «o PSD actual») vem jogando em todos os tabuleiros porque está realmente disponível para todos os cenários, mesmo para nova mudança de ideias quanto ao Chega, e ainda que o seu primeiro interesse seja de facto a viabilização do país.
Não basta ter o coração no sítio certo. Rui Rio fracassou no debate com André Ventura por mais do que inabilidade retórica. Ainda que diga o contrário, admite efectivamente replicar no país a solução de compromisso com a extrema-direita que experimentou nos Açores. O que prova duas coisas. Em sentido estrito, que não aprendeu nada com o que lhe tem acontecido na Região. E, em sentido lato, que não sabe que simplesmente não se pode negociar com a extrema-direita, o que é de uma incultura, de uma ignorância histórica, de uma falta de mundo e deuma ingenuidade desconcertantes.
Portanto, resta-me a continuidade. O Portugal que temos não é isento de assimetrias, de injustiças ou sequer de corrupção. Mas Costa governou com razoável estabilidade em crise económica, depois em crise pandémica e em permanente crise política.Quem o acompanhará desta vez – eis a vertigem

 

*Escritor e membro do programa da RTP Açores Novo Normal (quartas e quintas-feiras à noite)

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