Dois anos de pandemia:  algumas reflexões

Dois anos de pandemia: algumas reflexões

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“Em suma: a pandemia trouxe à superfície as fragilidades do país, a começar no sistema de saúde, passando pelo sistema de ensino, pela estrutura empresarial, pelo urbanismo e pelo parque habitacional. A Covid pôs-nos a vida do avesso, e ainda agora vamos aqui, pois ninguém sabe quando nos libertaremos dos condicionalismos que ela impôs ao nosso dia a dia.”

 

No dia 1 de Março de 2020, fomos, a minha mulher e eu, a Viana do Castelo, almoçar com um grupo de amigos com quem tínhamos feito uma esplendida viagem no Verão de 2019. O grupo tinha a tradição de reunir por esta altura do ano para recolher sugestões e ver hipóteses de possíveis viagens para o Verão seguinte.
Nessa altura, já era do conhecimento público o novo coronavírus, o SARS-Cov-2, que aparecera em Dezembro, na cidade de Wuhan, China, cujo surto tinha sido declarado pela OMS, em 20 de Janeiro, como “Emergência de Saúde Pública de Âmbito Internacional”. Neste contexto, durante o almoço, as conversas tanto andaram à volta da viagem do Verão anterior como sobre a Covid-19.Os mais optimistas sublinhavam que a China ficava muito longe, para cá chegar o coronavírus teria que percorrer mais de 9 000 quilómetros, e argumentavam:  não seria a primeira vez que se falava imenso em epidemias, por exemplo a da “Gripe das Aves”, que não tinham tido verdadeiro impacto nas viagens. Os pessimistas, por sua vez, diziam já ter tomado a decisão de não sair do país em 2020. Um terceiro grupo mostrava apreensão, dizendo querer esperar para ver.
Na viagem de regresso a Braga, decidimos não sair para o estrangeiro no Verão. Estávamos, isso sim, tentados pela proposta de um casal amigo: fazer a “Nacinal-2”.Em pouco tempo, contudo, a situação agravou-se de tal maneira que nem a “Nacional-2” escapou. Em Portugal, a 2 de Março, eram noticiados os dois primeiros casos da doença; a 11, a OMS classificou o surto como “pandemia” e a 13,considerava que a Europa era o seu epicentro;a 18 foi decretado o confinamento em Portugal: o país parou. O que se seguiu é conhecido: confinamentos mais ou menos estritos, números inimagináveis de infetados espalhados pelopaís inteiro, números aterradores de internamentos em enfermaria, em UCI e mortes. Durante meses o Serviço Nacional da Saúde apenas se dedicou quase exclusivamente à Covid; os hospitais quase só faziam internamentos de doentes afectados com o coronavírus, suspendendo toda actividade hospitalar não urgente. Aos profissionais do sector da saúde foi pedido um esforço heróico e a resposta foi admirável. As pessoas pertencentes a grupos de risco andavam, e andam ainda,com o coração nas mãos com o medo de serem infetados, surgiram surtos em muitos lares de idosos cujas consequências se traduziram num número muito elevado de mortes, pois que não foi dada a devida atenção ao sector cujos riscos todos tinham a obrigação de conhecer; o número de fatalidades na rede de lares foi elevadíssimo. Em suma: a pandemia trouxe à superfície as fragilidades do país, a começar no sistema de saúde, passando pelo sistema de ensino, pela estrutura empresarial, pelo urbanismo e pelo parque habitacional. A Covid pôs-nos a vida do avesso, e ainda agora vamos aqui, pois ninguém sabe quando nos libertaremos dos condicionalismos que ela impôs ao nosso dia a dia.
Em meu entender, há umas constantes nestes anos que levamos de pandemia a merecer reflexão. Em primeiro lugar o país não estava preparado para um choque com a magnitude do da pandemia por SARS-CoV-2; talvez nenhum país do mundo estivesse. O Governo fez o que pôde, tentando gerir a crise, aconselhando-se com os cientistas, mas não descurando a dimensão política que o seu discurso sempre tem. O balanço até nem é negativo, embora alguns exageros, a que qualquer governo que estivesse no poder dificilmente escaparia, foram e são evidentes e de lamentar. Um sinal desses exageros ficou bem patente nas conferências de imprensa dos primeiros tempos na Direcção Geral de Saúde, em que se misturavam a informação técnico-científica e o discurso político de gestão da crise, sendo difícil para o cidadão comum fazer as necessárias distinções. Outro exemplo dos exageros, que continua nos nossos dias, podemos encontrar nas viagens da Senhora Ministra da Saúde e dos seus Secretários de Estado pelo país e a sua constante presença na comunicação social. Sei que é quase impossível ao poder político resistir a essa tentação, mas a sua constante presença não levará o cidadão comum a perguntar: quando é que estes membros do Governo têm tempo para estudar os dossiês e discutir os assuntos?
Outro aspecto que merece reflexão é o das vantagens da articulação das instituições da sociedade civil(Cruz Vermelha, Misericórdias, Fundações, Laboratórios de Investigação, o sector privado da saúde e empresas em geral) e o Estado. Durante estes largos meses de pandemia muitas vezesseteve a sensação de que os responsáveis governamentais pelo sector da saúde, seguindo, aliás, a tradição centralista do poder político em Portugal, queriam, acima de tudo, aproveitar a oportunidade para provar que o SNS sozinho era capaz de enfrentar a crise, esquecendo-se que todos eramos poucos para alcançar esse objectivo. Nestes assuntos, quando a ideologia toma a dianteira relativamente à realidade, o país fica a perder.
Um terceiro tema a merecer reflexão é o da comunicação social, em especial a televisão. Já há alguns anos, nos canais generalistas portugueses, os telejornais das vinte horas têm pelo menos a duração de uma hora e meia, em que as notícias são apresentadas no modelo de “informação-espectáculo” hoje muito comum. A Covid-19 acompanha-nos há quase dois anos, mas continuamos a ver telejornais em que bastante mais de 50% do tempo é dedicado à pandemia. Repetem-se informações, ouvem-se especialistas, fazem-se ligações em directo a não sei quantos pontos de reportagem que não adiantam nada ao que já foi dito e tudo o que não é pandemia quase não aparece. Perante o que acabo de dizer, em primeiro lugar vale a pena perguntar se no meio do espectáculo presente nos telejornais, o cidadão comum fica efectivamente informado e, em segundo lugar, com a redução quase total nas notícias à pandemia, se não é de lembrar, parafraseando uma célebre afirmação do Presidente Jorge Sampaio, que “há mais vida para além da Covid!”
Olhando o futuro, há um outro problema a exigir reflexão e decisões ponderadas: como é que o sistema de ensino português  vai recuperar dos danos causados pelo funcionamento anormal da escola em termos de aprendizagens. Penso em especial nos alunos do 1º ciclo. Como é que se vão recuperar as aprendizagens dos alunos que fizeram o primeiro ano de escolaridade em 2019-2020 e 2020-2021, principalmente as crianças que vivem em meios desfavorecidos? Se não for dada grande atenção a este problema, em termos de ensino, as consequências da pandemia não serão menos graves do que as verificadas ao nível da saúde, porque muitas crianças serão vítimas dessas deficiências ao longo de toda a sua vida.

 

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