A harmonia do Homem  nos “seus céus estrelados”
Lúcia Simas

A harmonia do Homem nos “seus céus estrelados”

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O Juízo do Gosto e a possibilidade da Eudaimonia

Até à modernidade e aos conflitos como filósofo Baumgarten (1714-1762) as ciências estéticas não separavam a sensibilidade e o entendimento como diferentes fontes do conhecimento das representações sensíveis ao gosto.
Nas primeiras análises, Kant desejava aliar o conceito da natureza ao da liberdade através do entendimento do ser humano. Já existia muito estudo sobre a beleza artística por isso não dedicou quase nenhum interesse ao tema. Pouco escreveu sobre a Estética pois o Belo, o Sublime e o Natural estariam acima de qualquer composição artística. No juízo do gosto separa assim a Arte do sentimento puro e desinteressado do Belo.
“Todo o interesse corrompe o juízo puro e livre do gosto” porque a beleza se basta a si mesma (1). Já a Estética é menor do que o Sublime e o Belo, únicos apenas na Natureza.
Este problema é debatido por muitos pensadores, mas a capacidade do Belo ser representado universalmente sem conceitos só é atingida por Kant, na subjectividade que paradoxalmente é universal. Para a capacidade de julgar Kant reserva estudos sobre a vontade pois tudo na natureza age segundo leis e a vontade no homem é uma fórmula do imperativo categórico como lei universal.
O pensamento tem duas legislações isoladas uma da outra, sem influência recíproca de uma sobre a outra pelo grande abismo que separa o suprassensível dos fenómenos. Além dos juízos da ciência, a faculdade de julgar humana existe no âmago da subjectividade com capacidade universal.
Não podemos convencer ninguém do nosso sentimento do juízo do gosto e partilhá-lo com os outros. Não podemos universalizar e Kant esclarece que, na sua estética, o julgamento, próprio de cada um, é ao mesmo tempo subjectivo e particular e um juízo universal e objectivo.
O juízo do gosto separa-se do julgar. O gosto não está no objecto nem sequer na nossa relação com ele. É algo mental, próprio de cada sujeito, todos o têm, é igualmente universal. Todos têm juízos de gosto embora todos possam ser diferentes. Embora comum a todos falta qualquer prova que leve a impor o juízo do gosto a outro. Aqui Kant (2) depara-se com um paradoxo.
O assunto refere-se a dois pontos da natureza do julgamento, os mecanismos fundamentais do esquema do “como” e o do “porquê” que mostra acontecer no senso comum e no público em geral o que prova serem subjectivos e ao mesmo tempo universais. Como é possível refere-se ao nosso sentimento subjectivo do Belo enquanto o porquê refere-se à universalidade.
Uma ciência do belo é impossível por carência de lógica, por outro lado, temos uma estética do juízo do gosto e este não tem nem uma propriedade, nem qualidade do objecto, é o sujeito que procura determinar a teleologia sem fim fora do gosto.Se não existe nenhuma possibilidade de atribuir aos outros o nosso sentimento só podemos partilhar racionalmente com os outros a sensibilidade de gosto. Sem a universalidade do Belo podemos construir uma estética mas não uma lógica. Então o belo é aquilo que agrada universalmente ainda que não possa ser explicado pela razão. Há diferença intransponível entre a sensibilidade ao Belo e a sua comunicação com os outros. A nossa escolha de algo Belo é subjectiva mas abarca a sensibilidade de todos.
Um sujeito é obrigado a aceitar os princípios da matemática enquanto o conceito de beleza é sempre subjectivo. Se basta por si mesma há uma inevitável superioridade da beleza natural em relação à beleza da arte. Podemos comunicar a nossa noção de beleza sem que o sujeito a partilhe, por exemplo, num quadro. Cada um percebe a beleza nas coisas mas não pode partilhar o sentimento porque não tem nada a ver com o conhecimento. O inefável é algo mental, indiscritível e inexplicável na sua subjectividade mas, não sendo conhecimento, tem a peculiaridade de ser comunicável. O paradoxo que Kant está em ser universal.
A faculdade de julgar fornece um princípio que permite reflectir sobre a natureza. Kant coloca dois modos teleológicos dos juízos de julgar e do gosto. Há dois juízos reflectintes sem fim, mas o “aderente” agrada, pode ser útil, ou bom, acrescentamos mais uma finalidade. Kant afirma a capacidade de ultrapassar a duplicidade.
A unidade apenas apareceria no juízo do gosto puro, livre. Kant equacionou um homem através do juízo teleológico com um prazer que ultrapassa a sua subjectividade na faculdade do gosto. Ao finalizar as três críticas mostrou a necessidade de existir objectos e juízos estéticos que não são ainda o Belo no sentimento inefável da mente. Os juízos “livres” sem conceito, com ausência de todo o interesse que não é do conceito e nada se junta ao puro juízo do gosto (3).
O Belo é algo mental. Designa-se por intuição ou sentimento de prazer, sentimento vital de julgar que em nada contribui para o conhecimento.
O juízo formulado mediante as estéticas artísticas é lógico, reporta-se ao objecto têm um esquema lógico e não um sentimento apenas subjectivo.
O sujeito é subjectivo pode comunicar a outro o que sente. Afirma que aquela música ou escultura são belas, mas não convencer. Este juízo é reflectinte mas não completamente puro. Há finalidade sem fim mas acrescenta ainda outras funções, talento, lucro. No juízo do puro gosto sem qualquer outro interesse a teleologia torna exigível um princípio objectivo, a adesão universal (4).
É fulcral ler nas palavras de Kant o papel que desempenha a questão do juízo do gosto para verificar que não nos devemos preocupar minimamente com a existência do objecto que nos permite experimentar o Belo, pelo contrário, ser indiferente ao que se refere.
Assim podemos dizer, sem atraiçoar a noção da beleza,que o juízo do gosto é uma finalidade sem fim. Na beleza da natureza não há finalidade ou interesse. O objecto é livre, árvore, pássaro, o gosto é simplesmente contemplativo. Esta subjectividade liberta de interesse com uma universalidade subjectiva ligada ao juízo do gosto. Daí a importância de Marcom ter entendieo o conceito de “aderente” como uma inclinação, uso  que retira a finalidade (5) teleologicamente sem fim senão a que se liga ao juízo de gosto.
A natureza será sempre superior à beleza “aderente” aliciações colocadas nos objectos, pessoas, cavalos, monumentos. Apesar de haver uma finalidade sem fim, reflectinte, a aderência mostra a superioridade da natureza porque na arte, existem interesses ou comparações com outros objectos com outros atributos além do puro desinteresse.
Repare-se que a beleza da arte, além de bela, está vinculada ao bom, útil, finalidades fora da sua fruição e logo trata-se de uma beleza menor do que a perfeição da Natureza.
Raras vezes Kant se refere ao sublime que é o estado de contemplação sem precisar de conhecimento nem de beleza artística o que implicaria a sensibilidade e as capacidades do conhecimento impróprias para a beleza. A contemplação só depende da subjectividade na união ao inefável, sem ser conhecimento, nem crença. Na natureza deve existir uma beleza mais forte, melhor do que na arte só assim o puro juízo de gosto é independente da aliciação “aderência” e da emoção. A beleza da arte está ligada a interesses, logo é uma beleza menor. Os sentimentos de prazer e desprazer dos objectos talentosos exigem uma sensibilidade adequada além “do juízo reflectinte”implicando outras funções.
A contemplação é uma capacidade que não deriva do conhecimento nem da razão. O sentido do inefável é o único estado de subjectividade universal do ser humano. Sem designação do objecto, ou da consciência, é um estado de “gozo ou contemplação” deixa de ser um julgamento de gosto mas o gosto puro e livre.
Kant é optimista. Coloca no futuro o que deve ser, ou uma eudaimonia, objetivo da filosofia prática - incluindo a ética e a filosofia política, e harmonia. Poderá ser alcançado inserindo o homem num contexto universal em que a sua capacidade racional o tornaria responsável pelo destino que se joga na História.
Face ao absurdo trajecto do humano, Kant interroga-se pela existência de um determinado plano da Natureza. Nesse enigmático desenvolvimento esse juízo do gosto tende para a moralidade como valor absoluto da maior amplitude. A ciência não pode prescindir do vínculo entre a razão teórica e a prática. Kulpe encontra na crítica da Faculdade do gosto a unidade teórico-prática como a “jóia do sistema”, o sentimento do gosto é a luminosa forma da realização de fins morais. Sabemos que a felicidade não é absoluta, nem está em si mesma, depende da dignidade de a merecer. Nada se sabe da finalidade da criação. Só a teologia moral preenche esta lacuna. A existência de Deus mostra um ser inteligente mas não compreendemos os seus atributos nem da finalidade da criação. “A Crítica da faculdade do juízo” converte-se na tentativa de unidade. Na harmonia do Universo adivinha-se um desenvolvimento cuja finalidade não conhecemos e daí que a História se apresente enigmaticamente “como história da liberdade da vontade”.


Bibliografia:
1 Kant, Critica do Juízo, Ed. 70,143-146.
2 Cochofel, João José, Iniciação Estética, Col. Saber, Ed. Europa América, 1958.
3 Rodrigues, Luís de Sousa, Filosofia, Kant, Plátano Ed., 1988, pp206-209.
 4 Kant, Ibidem.
5 https://www.youtube.com/watch?v=VJVgVO-jfhI&t=24s
Ramom Marcos, Introdução à Estética, 2021
6  Kulpe, Oswald, Col Labor 3ª Ed. Editorial Labor, S.A.3ª. Ed. 1939.

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