Este tempo que nos é dado viver
Maria Luísa Soares

Este tempo que nos é dado viver

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Adeus Covid, vai-te de uma vez, não deixas saudades. Foste uma sacana impiedosa, uma ameaça suspensa no nosso quotidiano, a lembrança sempre presente da nossa mortalidade. No teu rasto, a desolação e o vazio das vidas que tiraste a tanta gente.
Valerá a pena lembrar-te, dar-te um lugar na história de cada um de nós? Valerá mesmo a pena? Ou será melhor recusar-te lugar na teia de  lembranças de que a nossa vida é feita? É o que me pergunto, eu que fui uma das tuas vítimas escolhidas, a sobrevivente teimosa que andou a trocar-te as voltas.
Sabe bem este  divagar em tarde de sábado e em debruce de janela aberta para o mundo lá de fora. Inexplicavelmente, vêm-me à memória coisas que me puseram a recitar no tempo de escola e que sabe-se lá porquê, nunca esqueci : Quando olho o mundo tão disperso e desigual/procuro em vão descobrir/ como podem existir/tão perto o bem e o mal.
O autor? Não sei, e nunca me preocupei com isso.
O lembrar-me disto assim sem mais, talvez tenha a ver com o que  me é dado viver agora, no tal  “mundo disperso e desigual”.  O mundo defensor da autodeterminação dos povos e dos ideais democráticos e outro que nega a ordem e as regras internacionais que resultaram do fim da guerra fria.
Tão certo este ciclo de repetição  da nossa história de vida no planeta. Os acontecimentos que enformam as diversas culturas a repetirem-se anos após anos, século após século. E nós a esquecermo-nos disso.
Na história deste tempo que nos é dado viver, dou comigo a achar quão perigosa é esta súbita transição para uma nova ordem mundial imposta por um ditador russo que dá pelo nome de Putin. E da facilidade como esquecemos o passado tão próximo, mais as  vivênciase os erros de que ele é portador.
Nós, que temos vindo a antever uma mudança, uma merecida mudança para uma vida melhor depois da paralisia dos dois anos de pandemia, deparamos com um indivíduo que parece decalcado de Hitler a dar início a uma guerra de desfecho imprevisível. Só porque não consegue aceitar o facto de a URSS ter colapsado. Reconstruir o passado dos czares tornou-se o  sonho megalómano deste Putin.
Apetece perguntar se o estado mental dele não terá sido afectado durante a pandemia. É uma probabilidade a não descartar…Como sabemos, ela deixou um cardápio longo de mazelas pós-pandémicas.
Saber que um homem destes está à frente do maior arsenal nuclear do planeta, faz-nos viver em pesadelo, afugenta-nos a tal paz tão merecida depois do que suportámos durante os dois anos deum outro pesadelo que também desequilibrou bastante a normalidade com que vivíamos antes.
Mas acho que me fico por aqui: são horas de dormir e quero evitar os pesadelos com que o sono às vezes me brinda.
Lembro-me que quando vim de África como retornada, vivi também uma situação de aflição e insegurança muito semelhante, e dos pesadelos que tinha por causa disso. Nessas alturas, as minhas preocupações maiores iam para os meus filhos que vieram comigo para Portugal, mas só depois do susto de muitas peripécias e de o pai deles ter ficado por lá preso pelas tropas da Frelimo, por tempo indeterminado.
Quando vejo a aflição dos ucranianos para fugirem da guerra, ponho-me na pele deles, sei o que sentem. Também em tempos que já lá vão, senti o mesmo. África tinha-se tornado um lugar inóspito que urgia deixar para trás e abalar quase só com o que trazíamos no corpo, na ânsia de começar uma vida nova em segurança noutro lugar. A meu favor, tinha o que a maioria destes ucranianos não têm: uma casa e família à nossa espera. E os Açores receberam-nos muito bem.
Se bem que ainda me lembro que no aeroporto de Lisboa passei um susto que nunca esqueci: a minha filha que na altura tinha dois anos e meio resolveu esconder-se num dos armários do aeroporto, tudo na brincadeira, mas ninguém me sabia dar sinal dela. Como eu vinha sozinha com os dois, não lhes podia dar  uma atenção total e bastaram os poucos minutos que passei no guichet a tratar do indispensável, para a safadinha resolver explorar o mundo à volta.  Era tudo novo, não resistiu ao desafio.
Pus meio mundo à procura dela lá no aeroporto sem nunca a encontrar, até que o meu filho de seis anos se lembrou de pesquisar um lugar que também a ele o atraía como esconderijo: um armário alto e fora de mão, de portas bem fechadas a prometer mistérios bem guardados. E lá estava ela. Muito sorridente e nada disposta a que a arrancassemdaquele lugar. E sem perceber depois a preocupação dos adultos, pessoas estranhas e complicadas que raramente percebiam como era bom brincar e fazer de conta…
Enfim, tudo acabou bem, como espero que acabe para estas mães e seus filhos que merecem também a normalidade de uma vida fora do inferno que os russos querem  fazer da Ucrânia.
É este o tempo que nos é dado viver: balouçantes entre a esperança de que em breve se acabe o tempo pandémico e o medo de que a paranoia do líder russo alastre pelo planeta.

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