Delegação de funções como excesso de poderes ilegais  e estranhos
Arnaldo Ourique

Delegação de funções como excesso de poderes ilegais e estranhos

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“Cada membro de governo só tem a sua competência e que é aquela que as leis lhe atribuem. Como são suas não as pode delegar noutra entidade; caso contrário, por um mero ato desclassificaria as suas atribuições legais e, pois, seria inteiramente ilegal e deixaria de existir democracia.”

 

O caso que aqui visamos analisar – era uma prática corrente nos governos da 2ª fase política da autonomia açoriana; mas mantém-se na atual 3ª fase.
Um chefe de gabinete de um Secretário Regional é um cargo político: são livremente escolhidos pelo membro do governo, o seu regime está previsto numa lei específica no circuito das leis orgânicas dos governos, e têm por funções coadjuvar, orientar o membro do governo nas suas funções; é um secretário político do membro do governo porque garante todas as suas necessidades, faz as ligações diplomáticas nos corredores de espera e encontros. Cada membro de governo tem um gabinete composto por um chefe de gabinete, adjuntos e assessores. Todos são funcionários públicos, mas com uma diferença grande: o membro do governo e o seu chefe de gabinete são cargos políticos e são, por inerência dessas funções, funcionários públicos caso já não o sejam nas suas respetivas funções de funcionários públicos agora em exercício de funções políticas; o 1º é um cargo político de natureza estritamente política, porque decorre dum processo eleitoral e subsequente escolha política, isto é, é um cargo de nomeação; o 2º é um cargo político de natureza estritamente político-administrativa, de apoio ao membro do governo, isto é, é um cargo de nomeação. Os adjuntos têm funções de apoio político e técnico, têm o mesmo regime do chefe de gabinete. E os assessores e pessoal administrativo, esses são sempre funcionários públicos na sua carreira específica, mas no caso nessa função especial. Ou seja, um gabinete de membro de governo pode ter, e é a regra, funcionários públicos de nomeação (são-no enquanto se mantiver a nomeação) e os funcionários públicos por contrato de trabalho em funções públicas.
Cada membro de governo só tem a sua competência e que é aquela que as leis lhe atribuem. Como são suas não as pode delegar noutra entidade; caso contrário, por um mero ato desclassificaria as suas atribuições legais e, pois, seria inteiramente ilegal e deixaria de existir democracia. Logo, para que se possa delegar tem que respeitar a lei que lhe atribui o seu poder. A lei, na generalidade, é o Código do Procedimento Administrativo, e são estes os requisitos imperativos e que se violados há ilegalidade com todas as consequências subsequentes: 1) só pode delegar o seu específico poder (e não o dos outros), 2) não pode delegar todo o seu poder, mas apenas uma parte; e sobretudo, 3) só pode delegar quando a lei determina a matéria que permite a delegação e 4) só pode delegar em funcionários públicos, em dirigentes públicos ou em órgãos públicos. Em teoria, portanto, sendo um chefe de gabinete um mero secretário político-administrativo com uma função eminentemente político-administrativa de apoio institucional e política do membro do governo – porque não é um funcionário público, porque não é um órgão da administração e porque não é um dirigente público – logo, não pode delegar-se nele partes significativas das atribuições de um membro de governo.
E essa teoria está confirmada pela lei regional da composição dos gabinetes dos membros do governo (tal como acontece a nível nacional). Essa lei institui que a) «compete chefe de gabinete a coordenação do gabinete e a ligação aos serviços integrados ou dependentes do respetivo departamento governamental, bem como aos outros departamentos do governo» e que b) «é atribuída ao chefe de gabinete competência para a prática de atos ao abrigo de delegação de poderes do membro do governo». Aqui não está escrito, nem implícito, nenhum poder de delegação efetiva: pois apenas atribui esse poder na generalidade, isto é, diz que é possível a delegação. Temos de perguntar ainda: sendo possível que o membro de governo delegue funções no chefe de gabinete, quais as matérias que pode delegar?
Ou seja, não é esta lei sobre os gabinetes dos membros do governo, nem é o Código do Procedimento Administrativo que diz quais os poderes do membro de governo que ele pode delegar. Aqui ainda está a generalidade; falta a especialidade.
Assim sendo, quando a Vice-Presidência pelo Despacho 412/2022, de 17 março, delega na sua Chefe de Gabinete certos poderes baseando-se na lei orgânica do XIII Governo Regional, e no despacho da sua nomeação como membro de governo, e ainda no antedito regime dos gabinetes e no Estatuto Político dos Açores – está a criar um vazio jurídico e a cometer uma exagerada (por desnecessária) ilegalidade. Ou seja, é produzida uma delegação de poderes sem mencionar a lei que permite essa delegação.
E quais os poderes que foram delegados? Neste ponto, o exagero atinge a brutalidade jurídica e sem mencionar uma única lei habilitante: autorizar despesas com contratos públicos até ao montante máximo previsto na legislação regional aplicável para os diretores regionais; assegurar as ações e os procedimentos que se tornem necessários e sejam preparatórios de decisão final, relativamente aos serviços e organismos integrantes ou dependentes da Vice-Presidência, podendo emitir orientações vinculativas para o efeito; promover e coordenar a execução de programas ou projetos, tendo em vista, nomeadamente, a reestruturação, racionalização ou melhoria da celeridade, economia, eficiência, eficácia ou desburocratização dos serviços e organismos integrantes ou dependentes da Vice-Presidência, incluindo os respetivos procedimentos e decisões, podendo emitir orientações vinculativas para o efeito; emitir orientações vinculativas sobre os planos de recrutamento, seleção e formação profissional dos dirigentes e trabalhadores da Vice-Presidência, bem como fixar, fundamentalmente, as respetivas prioridades; autorizar a frequência em ações de formação, em qualquer parte do território nacional, bem como fixar e fundamentar as prioridades para a respetiva frequência; autorizar a inscrição e participação em estágios, reuniões, seminários, colóquios ou outras iniciativas que decorram em território nacional; conceder licenças, nos termos da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, bem como autorizar o regresso à atividade; homologar as avaliações de desempenho.
Um chefe de gabinete, que é um cargo estritamente político e escolhido livremente sem regras, e que regra geral são pessoas ligadas ou conectadas diretamente aos partidos políticos, a emitir orientações vinculativas e a coordenar a execução de programas de reestruturação, racionalização e melhoria da celeridade, economia, eficiência, eficácia ou desburocratização dos serviços e organismos da administração pública – é uma obra muito mal-amanhada. Não se compreende tanta desorganização em quarenta e cinco anos de autonomia política, nem se compreende em democracia atos que a desvirtuam. Nem há necessidade, se existir organização.

 

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