Um Arquipélago Prenhe de Vozes (Parte 7)
Chrys Chrystello

Um Arquipélago Prenhe de Vozes (Parte 7)

Previous Article Previous Article Navio de cruzeiros MARINA em Ponta Delgada
Next Article Acompanhado, mas nem tanto. Só, mas nem tanto. Acompanhado, mas nem tanto. Só, mas nem tanto.

Criação dos cadernos de Estudos Açorianos

Servi-me dos colóquios da lusofonia para levar os autores açorianos a mercados e leitores insuspeitos, incluindo a antiga Cortina de Ferro onde há gosto e apetência por escritores lusófonos. Criamos os Cadernos de Estudos Açorianos, um curso de Açorianidades1 e uma série de Antologias, (uma bilingue para o mercado norte-americano e canadiano, outra maior monolingue, em dois volumes, uma coletânea de textos dramáticos para o ensino secundário e uma antologia no feminino2. Projetos didáticos para disseminara leitores neófitos a escrita açoriana, de autores persistentes como tenazes foram os homens da Ribeira Grandeno século XVI, durante quatro décadasquando labutaram na sua reconstrução. Não se deixavam vencer nem pela doença nem pela natureza. Sofrendo as inclemências do tempo, reconstruíram tudo, limpando as terras, recompondo os moinhos, refizeram as casas, repararam os templos, erguendo a ermida de N. Sra. de Guadalupe, depois incluída na Igreja de S. Francisco onde forma a capela do Senhor Santo Cristo da Coluna.
Embora os autores açorianos tenham os livros lidos por umas poucas, centenas de pessoas no arquipélago e na diáspora, continuavam, ano após ano, a arar as palavras como se fossem terreno pedregoso sem húmus, mais duro que o basalto e mais inóspito que o Pico. Estavam assim esses autores tão olvidados como a populaçãoque esquecera já as erupções mais célebres do arquipélago. São todas diferentesas personalidades açorianas que escrevem livros eapresentam a fachada manuelina, bem compostinha embora, nalguns casos, se notem as fissuras da idade nos rostos martelados na pedra. Aprenderam com os estrangeiros a comportarem-se para ocultarem a terrível herança feudal que os condiciona aindae quando o verniz estala tudo vem à tona. É uma canga pesada para que se libertem em apenas três décadas de democracia. Ocupam as cores do arco-íris nos quadrantes políticos e dizem-se todos amigos, uns dos outros, num círculo de inveja e maldizer.
Mas há autores que convirá não esquecer. Dias de Melo foi professor, operário, agricultor, pescador, músico, escultor que trabalhou, ceifou, pescou e esculpiu cada palavra, como se fosse um baleeiro do Pico, nareferência constante de Mestre José Faidoca, nas histórias que presenciou como homem do mar, mestre de lancha. Escreveu como se da janela da casa, no Alto da Rocha na Calheta de Nesquim, vigiasse os botes e as lanchas da Calheta, baleando contra os Vilas e os Ribeiras. Andei na descoberta da sinceridade da sua obra, numa paixão literária, dessa escrita queflui ese embrenha como o nevoeiro em que os baleeiros se debatiam na luta inglória e injustacontra os patrões para sobreviverem se não se finassem na arpoação. Sempre o resumi a uma INJUSTIÇA. É da sua denúncia que trata ao abordar temas como a emigração, a vida no Pico natal, as realidades sociais e económicas, a repressão no Estado Novo, e para além dos dramas humanos na linguagem simples dos homens do povo, lá vem a injustiça.Cumpre-nos não deixar que a sua memória se esvaneça e porfiar para que os seus livros sejam lidos por todas as novas gerações.
Concebo ainda os livros do Daniel de Sá, a fugir todas as noites até Santa Maria. Será que saem silenciosamente da casa na Maia (S. Miguel), paredes meias com o Solar de Lalém e vão primeiro à Travessa dos Foros onde viveram décadas para matarem saudades antes de se aventurarem por mares alterosos e regressarem à Ilha-Mãe, em busca das pedras de antigas casas mitológicas que preencheram os sonhos do autor e serviram de motivo para o pastor das Casas Mortas. Estou a imaginá-los em fila açoriana, em busca do Santo Graal que tais pedras encerram. Felizmente, os tempos são outros, pois no tempo do pai do Daniel era preciso uma espécie de “passaporte” para se ir de ilha a ilha. No verão deve ser mais fácil aos livros aventurarem-se, que os invernos trazem ventos e marés de virar barcos pesados e alguns desaparecem sem rasto. Talvez os livros só passeiem entre a Maia micaelense e Santana mariense no estio, e tenhamos de ficar à espera para saber que novas histórias podem contar ao regressarem calma e silenciosamente às bibliotecas, já que não foram escritos para apanhar pó nem para embelezarem uma qualquer estante.
E em S Miguel Arcanjo (no Pico), que Cristóvão de Aguiar adotou, fantasiei que os livros debandavam a sete pés na sua ausência, abalavam em correria desenfreada e não era rumo às Poças onde ele tomava o seu banho matinal. Porque fugiam? De quem alvoravam? Disseram que ele erao inferno na terra, seria por isso que se escapuliam? Quis aproximar-me, mas não pude, estou náufrago dessa amizade perene, quando ele se encontra enclausurado nas quatro paredes opacas da sua memória enciclopédica ora perdida. De repente apercebi-me de que os livros em fuga não eram os dele, mas de outros autores numa roda-viva, em acesa discussão sobre a açorianidade que ele sempre denegava. Afinal, as tertúlias que tive em casa dele no ano de 2009 haviam passado para os livros que decoravam - como se de mobília se tratasse - a sua falsa no Pico.
No regresso, parei no café Refúgio, em pleno centro de São Miguel Arcanjo e, andados uns quantos passos rumo à casa do escritor deparei com uma velha camioneta de passageiros estacionada aguardando o começo da semana. Acorreu-me a ideia peregrina de como seria a aventura de “pedir emprestada” a carripana, começar a percorrer as aldeias (ditas freguesias nas ilhas) e gravar as histórias que os passageiros fossem contando. A viagem não teria destino. Duraria tanto quanto as histórias dos passageiros. Não seriam cobrados bilhetes. Pararia em todos os lugarejos habitados para que fossem contadas as histórias e lendas do local onde paravam. Que livro maravilhoso não daria esse compêndio de memórias apanhadas ao acaso daqueles que tomassem o autocarro dos sonhos. Certamente com a criatividade da Engenharia, Etnografia, Arquitetura e Historiografia tais ideias podem transformar qualquer uma na verdadeira Ilha da Fantasia, enriquecendo os atrativos para habitantes e visitantes, gerando mais e bons empregos, mais comércio, mais impostos, e será essa a verdadeira voz das ilhas.
Fim

Notas:
1- O curso acabou criado na Universidade do Minho mas a Universidade dos Açores nunca mostrou interesse em adotá-lo em ensino à distância.
2- As autoras são sistematicamente esquecidas numa comunidade conservadora e machista como é a açoriana.
Bibliografia:
Aguiar, Cristóvão de. Raiz Comovida vol. I, Edições Afrontamento 1978 “O homem açoriano é um mito e a expressão «literatura açoriana» é um equívoco”, in Onésimo Teotónio de Almeida, A questão da literatura açoriana – recolha de intervenções e revisitação, Angra do Heroísmo, Secretaria Regional de Educação e Cultura, 110-114. 1983 [1979], Passageiro em Trânsito Edições Salamandra 1994
Almeida, Onésimo. A Questão da Literatura Açoriana, Secretaria Regional de Educação e Cultura, 1983 Da Literatura Açoriana – Subsídios para Um Balanço,Direção Reg. dos Assuntos Culturais / Secretaria Reg da Educação e Cultura , 1986 “Açores, Açorianos, Açorianidade” Signo, 1989 Açores, açorianos, açorianidade. Um espaço cultural, 2ª ed., revista e ampliada, Angra do Heroísmo, Instituto Açoriano de Cultura 2011
Batista, Adelaide M. João de Melo e a literatura açoriana, Lisboa, D. Quixote 1993, Bettencourt, Urbano. Uma outra açorianidade. Um texto esquecido de Nemésio, in Vitorino Nemésio 1° Centenário do Nascimento 1901-2001, separata da Revista Atlântida, vol. XLVI, Angra, Instituto Açoriano de Cultura. 2001, Literatura açoriana – Da solidão atlântica à perdição no mundo, in Luiz Antonio de Assis Brasil e Jane Tutikian, Mar horizonte: literaturas insulares lusófonas, Porto Alegre, EDIPUCRS. 2007,
Carvalho, Ruy Galvão de, Possibilidades de uma literatura de significação açoriana, in Onésimo Teotónio de Almeida (org. e sel. de), A questão da literatura açoriana – recolha de intervenções e revisitação, Angra do Heroísmo, Secretaria Regional de Educação e Cultura, 68-73. 1983 [1956],
Castro Gabriela, Berta Pimentel Miúdo, Magda Costa Carvalho, (coord.), Reflexão sobre mundividências da açorianidade, Ponta Delgada, Universidade dos Açores. 2010,
Chrystello, J. Chrys. ChrónicAçores: uma Circum-navegação, De Timor a Macau, Austrália, Brasil, Bragança até aos Açores, vol.1 VerAçor 2009 ChrónicAçores: uma Circum-navegação, De Timor a Macau, Austrália, Brasil, Bragança até aos Açores, vol. 2 ed. Calendário de Letras 2011 Do outro lado da ilha,  inédito in Crónica do Quotidiano Inútil vol. 6
Costa, Vasco Pereira da. Fogo Oculto, ed. Calendário de Letras, VNGaia 2011
Dores, Vítor Rui,     Ilhas do Triângulo, coração dos Açores numa viagem com Jacques Brel, no Prelo 2009
Firmino, Almeida. A Narcose, Angra do Heroísmo, Secretaria Regional da Cultura. 1977
Garcia Eduíno Borges. Para uma Literatura Açoriana. 1953, Por uma autêntica literatura açoriana, in Onésimo Teotónio de Almeida (org. e sel. de), A questão da literatura açoriana – recolha de intervenções e revisitação, Angra do Heroísmo, Secretaria Regional de Educação e Cultura, 43-67. 1983 [1953],
Garcia, José Martins.    Para uma literatura açoriana, Ponta Delgada, Universidade dos Açores.
1987
Gouveia, Margarida Maia, Teoria da literatura açoriana, in Enciclopédia Açoriana, http://www.culturacores.azores.gov.pt/ea/pesquisa/Default.aspx?id=8182  (acedido em 26/7/2020)
Habermas, Jürgen in https://brasil.elpais.com/brasil/2018/04/25/eps/1524679056_056165.html  acesso 26.7.2020
Jacobs, Edgar P.    As Aventuras de Blake e Mortimer - O Enigma de Atlântida,Editora
Meribérica / Liber 1983
Jesus, Eduíno de, O que se deve entender por uma literatura açoriana, Correio dos Açores, Ponta Delgada, 25 de março 1948, Para uma teoria de literatura açoriana, Atlântida, vol. I, nº 4, Angra do Heroísmo, Instituo Açoriano de Cultura, 201-205. 1957
MacDonald, Ann-Marie The Way the CrowFlies, Harper Perennial 2003
MELO, Dias de, Mar rubro, 3ª ed., Ponta Delgada, VerAçor editores. 2008 [1958], Pedras negras, 4ª ed., Ponta Delgada, VerAçor editores. 2008 [1964], Mar pela proa, 4ª ed., Ponta Delgada, VerAçor editores. 2008 [1976],
Nemésio, Vitorino, Por que não temos literatura açoriana? – Uma entrevista com o moço escritor e poeta açoriano Vitorino Nemésio, Diário dos Açores, 2 maio 1923, Açorianidade II, in Urbano Bettencourt, Uma outra açorianidade. Um texto esquecido de Nemésio, Vitorino Nemésio 1° centenário do nascimento 1901-2001, separata da Revista Atlântida, vol. XLVI, Angra do Heroísmo, Instituto Açoriano de Cultura. 2001, Mau Tempo no Canal, Lisboa, Livraria Bertrand, 1944
Pavão, J Almeida Colagem dos Tempos, ensaio, Ponta Delgada :Universidade dos Açores Constantes de Insularidade numa definição de Literatura Açoriana in: Conhecimento dos Açores através da literatura, Angra do Heroísmo, Instituto Açoriano de Cultura, 31-47. 1988
Pinto Eduardo Bettencourt. Viajar com as Sombras, LibrosLibertad Pub. 2008 Tango nos Pátios do Sul, Seixo Publishers. Pitt Meadows. Canadá 1999 2ª ed. Campo das Letras 2001
Pires, A. M.Machado, Para a discussão de um conceito de literatura açoriana, Boletim do  Instituto Histórico da Ilha Terceira, vol. XLI, Angra, 842-858. 1983 Para uma Autêntica Literatura Açoriana, Suplemento Literário de A Ilha, Ponta Delgada:  Ponta Delgada, Universidade dos Açores: 1987, Para um conceito de literatura açoriana in Raul Brandão e Vitorino Nemésio. Ensaios. Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, col. “Temas Portugueses”, 1987
Sá Daniel de. Santa Maria ilha-mãe, VerAçor 2007 O Pastor das Casas Mortas, VerAçor 2007 São Miguel: A Ilha esculpida, VerAçor 2009 Ilha Terceira Terra de Bravos,VerAçor 2009
Serpa, Caetano Valadão. A Gente dos Açores, Lisboa: Prelo Editora, 1978.
Serpa Manuel. Da pedra se fez vinho. VerAçor 2008
Silveira, Pedro da. A Ilha e o Mundo, poemas. Lisboa, Centro Bibliográfico, 1953 Antologia de Poesia Açoriana – do século XVIII a 1975. Lisboa, Sá da Costa, 1977. Açores, in João José Cochofel (dir. de), Grande dicionário de literatura portuguesa e de teoria literária, Lisboa, Iniciativas Editoriais, 35-46. 1979.

*Jornalista, Membro Honorário Vitalício 297713
(Australian Journalists´ Association MEAA)

Share

Print

Theme picker