Diário dos Açores

Mas não posso dizer isso, porque é uma coincidência extraordinária

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1. OS AÇORES. O caso do médico do Corvo, que acusa Paulo Estêvão de o sanear do cargo do presidente do Conselho de Administração da Unidade de Saúde da ilha, é, evidentemente, uma coincidência extraordinária.
O médico de que Paulo Estêvão não gostava, afinal, estava a fazer um mau trabalho; e, ao mesmo tempo, um médico ligado ao PPM era o seu sucessor natural.
Se não fosse uma coincidência extraordinária, eu era capaz de dizer que não existe um governo, mas sim dois governos: um governo do PSD,empenhado em trabalhar com os melhores, e que nos primeiros meses até promoveu uma série de socialistas a chefes de serviços e de secção; e um governo da microcoligação CDS-PPM, determinado a fazer terra-queimada de tudo o que ficou para trás (inclusive do que foi bem feito), a perseguir as pessoas de que não gosta e a colocar homens de confiança em todos os lugares da administração pública que puder.
Mas não posso dizer isso, porque tudo se resume a uma coincidência extraordinária. E é pena, porque fica muito mal ao Governo (sem culpa nenhuma).
Agora, isto eu posso dizer: Dr. Paulo Estêvão, por favor, deixe de se comportar como se fosse o vice-rei do Corvo. Percebo o seu entusiasmo, mas os Açores ainda não são uma monarquia. Portugal é uma república e os Açores são parte de uma República. Além de que ainda têm um restinho de massa crítica para fazer um escrutínio mínimo da acção dos governantes (e afins).

2. O MUNDO. Nos Estados Unidos, uma possível decisão do Supremo Tribunal poderá levar à abolição da norma constitucional que garante às mulheres o direito ao aborto, fazendo o país regressar a 1973.Porque é disso que se trata: voltar para trás no tempo.
Ainda por cima, nós, portugueses, sabemos o que regressar a 1973 significa: significaria, no nosso caso, voltar à ditadura e ao conservadorismo bafiento de um tempo a que não interessa a ninguém regressar.
É provável que isso aconteça nos EUA, o que mostra bem que a eleição de Trump não foi um acidente, mas uma tendência – e que a eleição de Biden, sim, é uma excepção no processo de regresso ao conservadorismo.
Uma tendência, já agora, de que faz parte a própria dita «Jane Roe», a mulher que protagonizou o famoso caso Wade Vs. Roe.
Chama-se na verdade Norma McCorvey, ainda está viva eé hoje uma activista anti-aborto, porque se converteu a uma igreja evangélica. Portanto, eis, de novo, a religião a intrometer-se na vida dos estados.
Também isso mostra o quão deplorável será esse regresso ao passado.

3. O PAÍS. Entretanto, em Portugal, o grupo técnico que prepara o modelo de avaliação dos médicos retirou a proposta que considerava os abortos evitados como um factor da dita avaliação. Mas retirou-a pelas razões erradas.
A comissão chegou à conclusão de que a proposta era inoportuna – isto é: de que este era um mau momento para a propor –, mas não um mau princípio. E era de facto um mau princípio.
Porque implicava uma valoração ao aborto, o que é relevante.
Ora, Portugal é um estado laico. Em si mesmo, o aborto não é bom nem é mau. Não deve ser valorado: é um direito e é uma coisa normal da vida.
Dizem os defensores públicos da dita norma, mais papistas do que o Papa, que ela, no fundo, não condenava o aborto, mas premiava o bom planeamento familiar. Também nisso estão errados, porque o aborto faz parte do planeamento familiar.
 Não se pode considerar a necessidade de um aborto como um fracasso do médico assistente.
As pessoas fazem o que quiserem. A liberdade de cada uma é total até ao ponto em que se intercepta com a liberdade de outra. E um embrião de dez semanas não é uma pessoa.
Não tem personalidade jurídica e não tem, num país laico, direitos próprios.
E não vale a pena recorrer à demagogia de que, havendo casais a abortar quanto outros não conseguem engravidar, o desperdício se torna criminoso.
Nessa matéria, sou catedrático. E sei que assistir a um aborto é triste, aliás legitimamente triste, para um casal em perda.
Só que não pode ser esse casal a escrever a lei. As leis de um país laico devem ser escritas desapaixonadamente por quem não tem estados de alma em relação ao tema em causa.

4. OS AÇORES. O recontro Duarte Freitas/Vasco Cordeiro no Parlamento resultou no confronto verbal mais acalorado dos últimos tempos na política açoriana.
Um é neto de baleeiros, o outro filho de agricultores: falam assim.
Eu preferia, realmente, que Duarte Freitas tivesse dito logo o nome da empresa supostamente beneficiada pelo opositor enquanto secretário da economia, nos idos do consulado de Carlos César.
Está em causa, além de uma eventual responsabilidade política, uma putativa responsabilidade judicial.
Agora, sempre se animam um pouco as hostes. As hostes da política regional, sempre tão pezinhos-de-lã, precisam de animação.  
E assim, ao menos, não fica o sound bite todo para José Pacheco e o Chega, que tão oportunisticamente se têm aproveitado do silêncio.
Seja como for, Vasco Cordeiro é homem para aguentar a invectiva.
 O PSD tem sido muito fustigado por causa das agendas mobilizadoras, e aliás bem.
Portanto, o mínimo que se pode pedir é que também se faça o escrutínio do que aconteceu nestas ilhas durante os 24 anos de poder de um só partido.
Eu quero saber.

5. O PAÍS. O problema dos metadados vai resolver-se, mais que não seja porque a proposta do PSD é boa e o Governo não lhe quer ficar atrás.
Agora, vai resolver-se tarde. E, quanto ao atraso, vale a pena dizer três coisas.
Primeira coisa: Portugal é, neste momento, o único país europeu cujos serviços de informação e as autoridades judiciais não podem ter acesso aos metadados (por exemplo) das comunicações de uma empresa.
Segunda coisa: Portugal é o país com a legislação mais atrasada em toda a Europa nesta matéria, que é uma matéria de altíssima prioridade num tempo em que o cibercrime pode destruir uma pessoa, uma empresa, um país inteiro ou mesmo a ordem mundial.
Terceira coisa: Portugal é esse país porque o Governo ignorou ostensivamente os alertas das provedorias e das procuradorias para esse problema.
É lamentável. A ex-ministra Francisca Van Dunen foi avisada em 2019 de que havia este problema. Não fez nada em 2019, não fez nada em 2020 e não fez nada em 2021.
Agora, vamos a ver quantos processos judiciais vão cair em resultado deste vazio legal. E, sobretudo, que processos vão cair.
 Se caírem processos, por exemplo, da Operação Marquês, tanto a ex-ministra como o primeiro-ministro António Costa vão ter de explicá-lo ao país.
E, mesmo que o expliquem muito bem explicadinho, não se livram do embaraço.


*Escritor e membro do programa da RTP Açores Novo Normal (quartas e quintas-feiras à noite)

Joel Neto*

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