Diário dos Açores

O exemplo de Florianópolis

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Centenário de Pedro da Silveira, XII

A Lélia Nunes

A arqueologia literária de Pedro da Silveira, que pela primeira vez se leva a cabo por ocasião do centenário do seu nascimento, e a correspondente publicação integral dos seus escritos em prosa, num volume encostável ao da sua obra poética (também ela, aliás, muito tardiamente posta em livro, há três anos apenas), vão deixar-nos no fim desta efeméride um retrato francamente mais realista e verdadeiro deste homem de letras absolutamente fora de série. Sirva de exemplo a matéria do artigo de hoje. Depois de ter tentado aproximar os círculos intelectuais de Açores e Cabo Verde, e de nas páginas d’A Ilha ter escrito acerca de revistas brasileiras de literatura e arte em Abril de 1950, Silveira — que passou a usar pseudónimos para se esquivar dos golpes duma censura mais atenta, em consequência da sua dupla prisão política em 1948 e 1949 — traz ao conhecimento dos seus pares ilhéus a pujante acção duma nova geração de escritores e artistas plásticos de Florianópolis, Santa Catarina, Brasil, desejando que ela «sirva de exemplo aos jovens intelectuais açorianos».
Não é este o momento de tentar perceber se tal aviso ter sido feito poucos meses antes da mudança — definitiva — do florentino para Lisboa representa qualquer forma de desânimo acerca das capacidades locais dum florescimento cultural digno desse nome, e o que poderia ter significado para essa aproximação transatlântica que Pedro da Silveira surja — de forma bastante inusitada, e breve — na ficha técnica da revista Sul como seu «correspondente na Ilha das Flores», em Abril de 1951. Uma coisa é, porém, certa: não se esvaiu como balão sem nó lançado ao ar a sua atenção à vida cultural daquela ilha do Estado de Santa Catarina, «onde tanto sangue de pioneiros açorianos circula» (sic). No fim de 1952 e no primeiro semestre de 1953, escreveria para a revista Ler, das Publicações Europa-América, de Lisboa, críticas a livros novos de três membros do Grupo Sul, Florival de Passos(que viria para a Ilha da Madeira, conhecendo e publicando com Herberto Helder...), e sobretudo os destacados Salim Miguel e Eglê Malheiros — a que aqui voltarei um dia, fica prometido.

Vasco Rosa


Walmor Cardoso da Silva, Idade 21 (poemas). Cadernos Sul, n.º 1, edição do Círculo de Arte Moderna, Florianópolis (Brasil), 1949
Muito importante é já a actividade desenvolvida pelo Círculo de Arte Moderna de Florianópolis, a capital dessa terra sul-brasileira que se chama Santa Catarina, onde tanto sangue de pioneiros açorianos circula. Obra de jovens, a nós que também o somos orgulha-nos registá-las, ao referir aqui livro de autoria de um deles.
Nos três ou quatro anos que decorreram desde a fundação do CAM, os jovens santa-catarinenses desenvolveram, no seu meio, uma actividade prodigiosa quase. Fundaram uma revista, Sul, promoveram exposições de artes plásticas (entre elas algumas de artistas de Santa Catarina: Martinho de Haro1, Moacir Fernandes2, Silveira d’Avila3), fizeram conferências, fundaram um Teatro Experimental (representação da Cândida de Bernard Shaw, de O Mundo Começou às 5 e 47 de Luiz-Francisco Rebello,4 O Prazer de Romper de Jules Renard,5 etc.) e um clube de cinema.
Agora estes jovens lançam-se corajosamente à actividade editorial. Estão apresentando os Cadernos Sul e preparam-se já para Edições Sul. Seis volumes se anunciam: Idade 21 de Walmor Cardoso da Silva; Pinóquio (teatro) de Ody Fraga6, e Ilha (poemas) de Sálvio de Oliveira — nos Cadernos, Encontro (contos) de Salim Miguel, Teatro de Ody Fraga e uma Antologia de Poetas Novos de Santa Catarina 3 (Aníbal Nunes Pires, Antônio Paladino, Eglê Malheiros, Sálvio de Oliveira, Walmor Cardoso da Silva, etc.).
Uma série de prestimosas iniciativas que não é demais dar a conhecer. Algo que deveria servir de exemplo aos jovens intelectuais açorianos.
Da leitura do órgão dos jovens escritores de Santa Catarina, Sul, dois nomes se tinham destacado já bem nitidamente em minha memória — o ensaísta e contista Salim Miguel e Ody Fraga, escritor teatral. A colaboração poética não me impressionou tanto. Verdade que dos poetas apresentados por Sul, Eglê Malheiros, Aníbal Pires e Walmor Cardoso se mostravam promessas, mas mais nada. Falta uma visão de conjunto aos seus poemas talvez. E foi o que se deu com o último, agora que pude ler os seus poemas reunidos em livro — Idade 21.
Não se trata de um admirável livro, nem isso seria muito de esperar de um autor que pouco mais terá de vinte anos, se tanto7. Mas há incontestavelmente autêntica Poesia no livrinho de Walmor Cardoso. Poemas como «Desprendimento», «Suicídio»,«Fundo de quintal» e sobretudo o poema final e que dá o título à colectânea, fazem augurar para o poeta obra futura de grande altitude8.
As vozes dos grandes poetas brasileiros que romperam com a tradição métrica estratificada em rotina — Drummond de Andrade9 e Manuel Bandeira — sentem-se ecoar na de Walmor Cardoso. Não se trata, todavia, de imitação nem a influência (se chega a sê-lo) é absorvente. Não. Este poeta, intimista muitas vezes, mas decididamente tentado pela vida, pela realidade, que se pergunta «Que direito temos nós | De falar da morte?» e, solidário com os homens do seu tempo, afirma «Tenho | A vossa idealização, as invejas, os contactos que morrem | A vossa cadência irremediável | o tempo que não será mais, tenho | As ilusões tão perto agora | — realidade quando se forem [...] || Em regozijo à idade futuramente celebraremos os outros | Permanecendo em nós» — este poeta está já muito para além dos gloriosos pioneiros do Modernismo brasileiro.
Vago ainda nos seus intuitos, com muitas imagens na sua poesia velhas e gastas, a literatura brasileira creio que poderá contar no futuro com Walmor Cardoso como um dos seus poetas de vanguarda, ao lado desses outros jovens que, como Jorge Medauar de Chuva sobre a Sua Semente,10 souberam escutar esse que é o maior poeta vivo das Américas, o Neruda que disse num poema mundialmente célebre «Hablo de lo que existe. | Dios me libre | de inventar cosas quando estoy cantando.»11
Isto: ser sincero para si mesmo e para os outros homens. Poeticamente sincero, procurando a verdade e avançando no caminho do futuro.

Pedro da Silveira, assinando F[ernando] Fischer-Mendonça
A Ilha, Ponta Delgada, 16 de Dezembro de 1950, p. 3.


1Martinho de Haro (1907-85), pintor e muralista, e claramente o artista mais velho do Grupo Sul.
 2Moacir Fernandes de Figueiredo (1922-77), escultor.
 3José Silveira d’Ávila (1924-85), pintor, gravador, designer têxtil, um dos pioneiros da serigrafia no Brasil.
 4Obra de estreia do dramaturgo (1924-2011), também ele muito novo, foi escrita em Maio de 1946 e levada à cena no início do ano seguinte, no recém-criado Teatro-Estúdio do Salitre, em Lisboa.
5A tradução desta comédia num acto foi publicada no n.º 8 de Sul, em Abril de 1949.
6Ody Fraga e Silva (1927-87) viria a ser cineasta, argumentista e director de teatro e novelas para televisão. Viveu em São Paulo desde 1959. Pinóquio enquadra-se numa adaptação para público infantil.
7Nascido a 2 de Junho de 1927, em Dezembro de 1950 Walmor tinha23anos e meio.
8Cardoso da Silva continuaria a publicar poemas em sucessivos números de Sul, mas nunca mais lançaria aos prelos um livro de versos, ainda que edições posteriores o anunciassem em badanas.
9No n.º 9, de Agosto de 1949, Salim Miguel criticou — em antecipação — Idade 21 de Walmor (p. 14).
 10No n.º 10, de Dezembro de 1949, Sul publicou em página inteira retrato de Drummond por Segall.
11Jorge Medauar (1918-2003), de ascendência sírio-libanesa, haveria de distinguir-se como contista, recebendo em 1959 o Prémio Jabuti pelo livro Água Preta. Chuva sobre a tua Semente foi publicado em 1945, com capa ilustrada por Santa Rosa. Um ano antes do artigo de Pedro da Silveira publicara Morada de Paz. Poemas 1945-47. No poema final, «Autobiografia», escreveu: «Meu nome todo é Jorge Emílio Medauar | Filho de imigrantes árabes | Tenho ficha na polícia cidadão indesejável elemento agitador | E amo gatos bichinhos miúdos sem importância», etc.
12Do poema «Estatuto del vino», na antologia Residencia en la tierra II (1933-35).Curiosamente, Neruda está ausente da antologia de poesia traduzida publicada no fim da vida, a Mesa de Amigos de 2002.

Vasco Rosa *

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