Diário dos Açores

O Escritor no Seu Arquipélago

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Há um escritor açoriano, das novas gerações, que, num dos seus poemas, escreveu os seguintes versos: “Eu sou o mar e mais ninguém”.
É desses versos que me lembro agora que estamos em Santa Maria para celebrar Pedro da Silveira, após ter sido inaugurada a primeira placa-poema de uma série que queremos que se estenda ao arquipélago todo.
Pedro da Silveira era o mar e mais ninguém.
Não o mar no sentido morno e contemplativo do termo. Não o mar de postal. O mar imprevisível, o mar da nossa História açoriana, o mar que atravessou para se fixar em Lisboa, o mar dos seus antepassados emigrantes, os da baleação, os que procuraram o sustento que não conseguiam alcançar na sua habitação insular.
O mar que nos cerca e nos liga ao mundo.
Vamos sempre lá ter: a ilha e o mundo. O mundo e a ilha.
É nesta dicotomia que se cumpriu – como poeta, como investigador, como figura que fazia das crónica e das entrevistas uma forma de passar ideias, convicções.
Perguntavam-me no outro dia por que é que (só) Pedro da Silveira merece ser espalhado por todo o arquipélago, nestas placas-poema, e também nos cem excertos dos seus poemas, que serão colocados em montras açorianas, num gesto de vontade cidadã e acolhimento institucional? Eu respondi: porque ele era esse arquipélago. Portanto corrijo.
Pedro da Silveira era os Açores e mais ninguém.
Era os Açores porque tinha os Açores como chão primeiro e último da sua identidade. Uma identidadeaberta, não fechada, impura, no sentido de ter diferentes origens e destinos, como são os Açores desde o povoamento – com cruzamentos vários, consagrados, por si, no poema “Soneto de Identidade”, em que se diz descendente de flamengos, castelhanos, alemães ou polacos. “Espelho opaco de errâncias várias”.
Se houve alguém que, pela arte literária, pelo estudo etnográfico, pela, muitas vezes, solitária vontade cultural e política, pelo sentido de provocação assente num entendimento da História e da geografia,  procurou, de forma orgânica e construída, unir as nove ilhas do arquipélago, essa pessoa foi Pedro da Silveira.
Viveu em várias das ilhas, valorizou-as a todas, percebeu as diferenças e as rimas, escreveu sobre elas, com uma verdade só sua, com o seu ângulo feito de muito conhecimento e basta emoção.
Um arquipélago que dialoga com outros arquipélagos – Cabo Verde, Madeira, Canárias – para com eles constituir um território comum, de afinidades e aprendizagens.
Há um livro composto pelas suas traduções de poesia de autores das mais diversas geografias: “Mesa de Amigos”. Pedro da Silveira fez dos Açores uma mesa de amigos. E os Açores nem sempre são uma mesa de amigos. São, muitas vezes, uma mesa de familiares desavindos e que até negam essa condição de familiares para se distanciarem, para quererem ser mais ilha, aqui no sentido redutor do termo, e menos mundo.
Pedro da Silveira era um escritor num arquipélago de escritores. Um escritor no e do seu arquipélago. E é por isso que é orgulho verdadeiro para nós, Arquipélago de Escritores, como movimento, cada vez mais diverso, cada vez mais para além do encontro a dada altura do ano, estarmos associados e directamente ligados ao descerramento da placa e a também a este colóquio.
Émais do que justo que Pedro da Silveira fique fixado em cada um dos seus lugares. Ele, cedo, percebeu que uma das fortunas que nós, açorianos, temos é a da criação literária, muita dela de qualidade e a merecer outros reconhecimentos. Os outros, os do mundo, poucos dela sabem. Nós, açorianos, comuns, institucionais, somos lentos, muito lentos, a reconhecê-la e a valorizá-la.
Pedro da Silveira, com o seu largo afecto, com a sua vocação para a leitura e para a antologia, cedofê-lo, nesse gesto difícil de reconhecer os profetas, no caso literários, da sua própria terra.  Profetas pecadores, é certo, porque é impossível invocar Pedro da Silveira sem atender aos pecados dos homens, criadores e não criadores. Às fragilidades, aos tropeços do espírito – e do corpo.
Pedro da Silveira, na sua brilhante imperfeição, é um exemplo maior para todos os que têm como causa a ideia de “arquipélago de escritores”. Um arquipélago que, passo a passo, placa a placa, livro a livro, tradução em tradução, residência literária em residência literária,leitura em leitura, revista em revista, pode afirmar-se como tal perante um mundo que já conhece a nossa Natureza mas merece também conhecer a nossa cultura e a nossa Natureza como espaço privilegiado para acolher e ajudar a fazer despontar tantas outras culturas. Tantos outros cruzamentos.
Nunca é demais lembrar e esta é uma ocasião para fazê-lo:
há, no passado, e no presente, autores que sabem contar este lugar, nas suas contradições, nas suas estendidas  luminosidades e nas suas grotas, como nenhum discurso de ocasião o sabe fazer.E não me refiro aos nomes já celebrados. Refiro-me a outros. De ontem, de hoje, repito.
Se Pedro da Silveira estivesse vivo, faria um inventário meticuloso do que se publica hoje nos Açores. Nem tudo é bom mas há muita qualidade. Faria também escolhas, polémicas, claro está, mas corajosas e necessárias. As “suas” escolhas – e, por isso mesmo, inteiramente respeitáveis.
Começamos a nossa digressão por São Maria, ilha primordial da nossa História, ilha de autores do passado e do presente. Lugar de permanência, de vivência de séculos, de respiraçãode gerações e de escala para tantos criadores.
Lugar de encontros artísticos diversos, com destaque para a música – e em muita da música há letras e, por isso, também formas de literatura. E é bom, diga-se, que as artes dialoguem – porque, todas muito distintas, fazem parte da mesma constelação.
Não podemos depender só do Estado para edificar a nossa cultura. Nós, cidadãos, também temos esse dever de nos valorizamos. Em todo o caso, há sérios motivos de agradecimento. O orçamento de cada um é limitado.
Agradeço, em nome do Arquipélago de Escritores, a todas as pessoas que, uma a uma, contribuíram para que esta placa-poema ganhasse forma.


(Texto lido no colóquio organizado pela Câmara Municipal de Vila do Porto sobre o poeta e investigador Pedro da Silveira, após o descerramento de uma placa com um poema seu sobre a ilha de Santa Maria)

Nuno Costa Santos *

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