Diário dos Açores

Mário Mesquita: intelectual, escritor e cidadão

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Há cerca de um mês conversei longamente ao telefone com o Mário Mesquita, amigo de mais de meio-século, sobre o seu longo artigo publicado no Le Monde Diplomatique (versão portuguesa).
Tratava-se de uma abreviação do seu discurso proferido na Universidade Lusófona do Porto, na cerimónia em que lhe foi outorgado um doutoramento Honoris Causa – “Do prazer da boa história, ao sonho do mapa-mundi” (fevereiro 2022). Longe estava eu de imaginar que esse texto iria afinal constituir um legado-testamento, pois nunca pressenti que essa nossa conversa seria a última de uma série de muitíssimas e prolongadas, tanto em pessoa como por telefonemas transatlânticos. Nem sonhava também que esse escrito, síntese magnífica do seu pensamento sobre o jornalismo e a sua legitimação, seria o seu derradeiro ensaio de grande fôlego. (Por gostosa coincidência, enquanto escrevo estas linhas chega-me de Ângelo Ferreira, da Universidade de Aveiro, um email entusiasmado com a leitura precisamente desse artigo que, por recomendação minha, acabara de fazer: “Extraordinário”- comentou em resumo).
Numa breve entrada no seu blogue, o Embaixador Francisco Seixas da Costa sintetizou magistralmente muito do que se me oferece dizer sobre Mário Mesquita e que já tentei desembrulhar num texto incluído no volumoso tomo (800 e tantas páginas) recentemente publicado, A Liberdade por Princípio – Estudos e Testemunhos de Homenagem a Mário Mesquita, coordenado por Carlos Guilherme Riley, Cláudia Henriques, Pedro Marques Gomes e Tito Cardoso e Cunha (Tinta da China, 2022). Seixas da Costa refere Mário Mesquita como “cidadão exemplar com uma ética à prova de bala, ícone de um jornalismo que já não é muito comum”. Curiosamente, nessa mesma entrada o Embaixador classifica com o epíteto de “ínclita geração” o grupo de açorianos que nos finais da década de 60 chegou a Lisboa para continuar estudos, e de que além dele faziam parte, entre outros, José Medeiros Ferreira, Jaime Gama e Eduardo Paz Ferreira. No meu atrás referido artigo, eu apodara de “plêiade” esse conjunto de magníficos, todos eles com carreiras marcantes na vida intelectual e política portuguesa.
Só terei espaço aqui para salientar três facetas da vida de Mário Mesquita: a do intelectual, a do escritor e a do cidadão.

O intelectual

 Mário Mesquita filia-se na tradição que os anglo-americanos intitulam de public intellectual, graças ao papel que sempre procurou desempenhar aliando o trabalho jornalístico ao académico. Tendo começado a sua carreira no jornalismo, desde cedo sentiu necessidade de aprofundar teoricamente as grandes questões que o preocupavam no exercício da profissão, nomeadamente as da deontologia e da objetividade. Daí ter-se empenhado na obtenção de um doutoramento que só não completou porque um perfeccionismo in extremis não consentiu que a sua tese fosse dada por pronta para ser entregue ao júri. Mário Mesquita achava que tinha de investigar algo mais aqui e ali, retocar, verificar fontes, atualizar-se na leitura das últimas publicações, tudo auto-imposto e sempre contra o conselho da universidade, dos colegas e dos amigos que acompanhavam o seu trabalho.
Na verdade, o seu impressionante  volume de ensaios O quarto equívoco – o poder dos media na sociedade contemporânea (2ª edição revista. Coimbra: Minerva, 2004) poderia ter sido apresentado como tese de doutoramento em qualquer grande universidade. Trata-se de um grosso conjunto de textos individuais guiados por um núcleo de preocupações coerentemente interligadas. Nele se concentram as mais profundas reflexões sobre a temática de fundo que informou toda a sua vida profissional de professor de comunicação social e de praticante do jornalismo. A leitura de, mesmo se apenas alguns, desses ensaios provará a qualquer espírito exigente que se está em presença de um pensador de grande quilate. No seu conjunto, o volume  é altamente esclarecedor sobre as águas profundas em que se movia o professor, o jornalista e o cronista, bem como o interventor na vida pública.
Não é invenção minha essa associação de Mário Mesquita ao public intellectual. A questão do intelectual civicamente interventor preocupava-o tanto que organizou, nos saudosos encontros do Convento da Arrábida, um colóquio justamente  sobre “O Intelectual Público”, em que eu próprio tive o gosto de participar a seu convite. Vinte anos depois, Mário Mesquita ainda acalentava a intenção de editar em volume os textos ali apresentados. A prolongada demora na entrega por parte de alguns participantes, tal como o famigerado perfeccionismo do coordenador, acabaram deixando incompleto esse projeto  em que MM manteve sempre um interesse especial.

O escritor

Saber redigir uma notícia e fazer uma reportagem é treino seguro para se aprender a escrever com clareza. No entanto, alguns jornalistas ficam-se apenas por aí. Os espíritos talentosos, porém, sabem depois acrescentar à escrita uma dose de elegância qb que, sem afetação, toca o paladar do leitor e o faz tomar-lhe o gosto, a ponto de o tornar saudavelmente dependente. O autor passa a confundir-se com o seu estilo, e a sua personalidade, sem emergir em primeiro plano, não deixa de ser identificada ou reconhecida em pano de fundo. O seu dedo deixa marcas na escrita. Em Mário Mesquita, a longa experiência jornalística aliada ao gosto literário fundiram-se numa escrita ágil, subtil – subtileza a um deveras elevado grau – arguta e incisiva, produzindo uma prosa fresca, por vezes mordaz, arejada, inteligente e segura.
A propósito, não resisto a citar aqui um comentário de Eugénio Lisboa em email para mim enviado no dia do falecimento de Mário Mesquita: “Também eu o admirava muito como pessoa, como jornalista e como notável escritor que era. Quando tomou conta do Diário de Notícias, como director, os seus editoriais, sempre admiravelmente escritos, fizeram-me dizer com os meus botões: ‘Este DN tem uma longa tradição de directores que são admiráveis escritores, como foi o caso de Augusto de Castro, ideologia a parte.’”

O cidadão

A vontade de intervenção pública de Mário Mesquita foi sempre impulsionada e norteada por um conjunto de valores éticos de que se deixou imbuir desde jovem. A idade apenas acentuou o lado algo cético que, embora provocando certo afastamento seu da cena pública, por outro lado lhe permitiu relativa distância crítica e isenta serenidade nos seus comentários escritos. Essa distância garantia-lhe, aliás, o necessário espaço para acentuar a postura irónica que desde muito jovem revelou. Todavia, nunca o facto de recuar perante as politiquices e o frufru do quotidiano político o impediu de intervir sempre que lhe pareceu urgente e oportuno.
Mário Mesquita empenhou-se, consciente e persistentemente, na busca de um equilíbrio entre os dois princípios básicos da modernidade – o da justiça e o da liberdade. Todas as suas participações públicas se pautam nesse registo. Aliás, ele era assim na vida pública mas também no tratamento com os colegas do jornalismo e da universidade, e com os amigos próximos. Essa atitude granjeou-lhe o imenso respeito dos que o conheciam de perto e, por sua vez, os leitores e observadores mais atentos que o acompanhavam de longe também são unânimes no reconhecimento desta sua dimensão idiosincrática. Na linguagem tradicional, denominava-se o seu estilo como o de “pessoa de caráter”. Bom, digamos que a terminologia é bem mais do que tradicional, pois é aristotélica. Atrevo-me a usá-la à vontade porque a ética do estagirita permanece moderna.
Mário Mesquita deixa muitos escritos inéditos, na sua grande maioria decerto prontos para publicação. Contudo, mesmo que esses nunca cheguem a vir a lume, os seus dois belos livros de crónicas Deve & Haver (Distri Editora, 1984) e A Regra da Instabilidade (Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1987), bem como o referido volume de ensaios O Quarto Equívoco, são de gabarito suficientemente elevado para figurarem em qualquer biblioteca que se preze. Não para impressionar as visitas, mas para volta e meia serem abertos e lidos ao acaso. A elegância da escrita aliada à finura do pensamento serão garantias do prazer que os clássicos têm o condão de proporcionar.

Onésimo Teotónio Almeida *

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