Diário dos Açores

Felizmente, às vezes vale a pena o trabalho

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Se tens um jardim e uma biblioteca

1. OS AÇORES. O Congresso do PS/Açores foi exactamente aquilo que Nuno Barata, mesmo dormitando na primeira fila, lhe chamou: um encontro para ajustar contas com o passado. O que podia provar que o deputado da Iniciativa Liberal vê mais a dormir do que um monte de militantes socialistas acordados, mas sobretudo prova que o PS não está realmente preparado para voltar ao poder.
Já aqui escrevi que, com Vasco Cordeiro, dificilmente o estaria. O único político português que chefiou um governo, saiu e voltou para chefiar novo governofoi Mário Soares, e Vasco Cordeiro não é Mário Soares. Mas o próprio conteúdo dos discursos teve um tanto de desolador. A única coisa que chegou a parecer-me minimamente entusiasmante foi ouvir o líder abordar um dos nossos muitos devastadores índices de desenvolvimento humano. Mas, afinal, apenas queria dizer que o PS tinha melhorado imenso a situação. Imagine-se se não a tivesse melhorado.
Portanto, falamos de um partido à espera, em modo pausa, com um líder de transição e preparado para ver os adversários governarem até ao fim do mandato. Nessa altura, sim, Francisco César há-de voltar de Lisboa e tentar dar início à nossa primeira dinastia política, género América do Sul. Até lá, o PS continuará a ser sobretudo o pai, como este congresso mais uma vez mostrou.É pena, porque o nosso regime precisa de um PS forte e preparado para governar a qualquer momento.

2. OS AÇORES E O PAÍS. Já alertei publicamente para os números do crime nos Açores, que estão a subir todos os anos desde 2013. Mas a última actualização é ainda pior. Entre 2020 e 2021, o crime em geral subiu em Portugal 0,9% e subiu nos Açores 7,9% – oito vezes mais. Já o crime violento, baixou em Portugal 6,9% e subiu nos Açores 14,6%. Portanto, falamos de uma região completamente em contraciclo, e para pior. E não de uma subida de 10 para 12 casos, mas de uma subida para 220 casos.
Se formos decompor os quadros, só nos preocupamos mais. Na violência doméstica (cujo ranking nacional lideramos há anos), o país desceu 6,5 % e os Açores subiram 5,3%. Entretanto, os raptos, os sequestros e os crimes com tomada de reféns, no âmbito da violência doméstica ou fora dela, subiram 71%. Os furtos a residências subiram 23%. As violações de mulheres subiram 8%. E tivemos 73 roubos por esticão, coisa que até há poucos anos nunca se tinha visto nas ilhas.
Isto sem falar no facto de um terço das novas substâncias psicotrópicas apreendidas em Portugal terem sido apreendidas nos Açores, segundo entretanto revelou a Polícia Judiciária. Pois eu só tenho uma pergunta: qual é a surpresa? Como é que nós podemos ter todos os piores indicadores sociais do país, alguns da Europa, e esperar que a nossa criminalidade não aumente?
Escrevo sobre isto há anos, sempre sob o epíteto de alarmista: os Açores são um terreno privilegiado para a criminalidade. A nossa criminalidade só não aumenta mais radicalmente porque somos portugueses, de brandos costumes, católicos e filhos do Espírito Santo. Só que a Córsega também era isso quase tudo. Começou da mesma maneira: atrasando-se cada vez mais, em relação ao continente francês, no desenvolvimento humano. Hoje é a região mais violenta da Europa ocidental.


3. O PAÍS. Três coisas sobre as eleições no PSD, que consagraram Luís Montenegro como sucessor de Rui Rio. Primeira: foram umas eleições pobres, com baixíssima participação e um desinteresse total de quase 60% dos portugueses, como mostrou uma sondagem da Universidade Católica. Segunda: foram umas eleições completamente viradas para dentro, sem debates e em que, ainda por cima, o único candidato com algumas ideias foi esmagado. Portanto, terceira: os 70% com que Luís Montenegro bateu Jorge Moreira da Silva diz mais sobre o estado do PSD do que sobre os méritos do vencedor.
O PSD sai destas eleições ainda mais frágil do que estava com Rui Rio. Desde logo porque o tempo continua a passar, a Iniciativa Liberal e o Chega continuam a crescer e o PSD continua a milhas de se refazer enquanto alternativa de poder.
Ou muito me engano, ou Luís Montenegro será um petisquinho para André Ventura e Cotrim de Figueiredo comerem ao pequeno-almoço – metadinha para cada um. Em parte, a culpa é de Rio, cujo legado se descreve numa frase: o presidente que não impediu o PSD de se deixar colonizar pela extrema-direita. Mas, em geral, fica provado que o PSDnão aprendeu nada com o que está a acontecer Europa fora. Em França, repito, o Partido Socialista, de Miterrand, estava no poder há apenas cinco anos –já desapareceu do mapa.

4. OS AÇORES. Uma pessoa não pode passar a vida a responder a quem se ofende com as críticas. Não faria outra coisa. Mas, de vez em quando, o empenho de um ofendido é tão admirável que justifica um esforço.
Na semana passada, dois políticos diferentes puseram de parte umas horas de sonopara me responder. Um não acredita que, tendo um dia coordenado o programa eleitoral de um partido da oposição, eu nunca tenha querido ser deputado, governante ou titular de qualquer outro cargo público. Já o outro, até o facto de eu ter sido comentador de golfe da SportTV usa para me desqualificar, como se falar de golfe na televisão fosse um meio de subsistência menos digno do que andar a bater às janelas das pessoas (sic) pela calada da noite corvina.
Devo compreendê-los. No mundo do primeiro, ninguém alguma vez se cansou com intervenções públicas a não ser para obter um tacho. Eo segundo, bem vistas as coisas, talvez tenha querido lamentar que, depois de anos a comentar os melhores golfistas do mundo, eu comente agora os melhores políticos da freguesia, o que só pode significar que ando a descer na vida.
Provavelmente, terei até de lhe dar alguma razão. Mas o que querem? Tenho um fraquinho pela minha terra. Gostava de dar o meu contributo, por muito modesto que seja, para que ao menos alguma da gestão que nela se faz da coisa pública deixe de ser tão paroquial.
De resto, já se sabe: o espaço mediático açoriano está menos habituado a homens livres do que esteve. E um homem livre, como nos mostra a história, é um homem que só tem adversários, quando não inimigos. Felizmente, às vezes vale a pena o trabalho. Por exemplo, quando os homens do poder vêm responder com tão comovente entusiasmo: só pode querer dizer que o tiro foi em cheio.

 


* escritor e comentador o programa da RTP Açores «Novo Normal» (quarta-feiras à noite, com repetição às quintas-feiras ao final da tarde)

Joel Neto*

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