Diário dos Açores

O impasse democrático dos Açores 2/2

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Apontamos no 1º texto a evolução política da Região para concluirmos da necessidade de melhorar o sistema de governo regional, expurgando o cargo de Representante da República, e recolocando as suas funções e outras funções sobretudo de controlo político num terceiro órgão próprio regional a criar numa revisão constitucional. Temos de acrescentar mais qualquer coisa; mais uma vez.
As regiões autónomas, sobretudo a dos Açores, estão à espreita da oportunidade para, numa revisão da Constituição, se alterar no sentido de expurgar o cargo de Representante da República. Nos Açores os partidos estão inclinados pela extinção do cargo; e muita da sociedade também o está. E sentimos, de algum modo, grande culpa por este sentimento regional: ao longo dos anos escrevemos ensaios sobre esta matéria, e sempre fomos, e ainda o somos, adversos à existência de um Representante da República.Mas há uma diferença abissal entre a opinião pública e a nossa: é que essa opinião pública está equivocada, pois o cargo não se resume à sua extinção.
Todos, invariavelmente, dão a sua sentença: o cargo não tem sentido de existir, ora porque não tem sentido que seja um órgão que não é eleito a nomear o governo; ora porque não tem lógica que seja um órgão não eleito a fiscalizar a constitucionalidade das leis e a assina-las. E isso é tudo, em termosrelativos, verdade. Mas é a partir daqui, dessa constatação realista e que todos concordam em uníssono, que existe divergência – e muita, felizmente. Alinhando-se quase toda a sociedade açoriana na extinção do cargo, já quanto às consequências da extinção do cargo –a discordância é total: a solução que a sociedade açoriana indica como entregando as atribuições do Representante da República ao Presidente da Assembleia Legislativa é, no mínimo, um retrocesso democrático.
Existem princípios e regras constitucionais que não é possível esquecer, sob pena de descaracterizar a essencialidade da democracia. Isso implica esforço de cada um, esforço que não se compagina com meras opiniões sem se importar com o que já está inventado, implementado e decorre do Portugal democrático. A ideia de que o Estado, faça o que fizer, é centralista por termos vivido em ditadura – é uma confusão dos termos: a ditadura foi extinta em 1974 e a democracia foi implementada a partir de 1996. Ressentimentos do passado não devem moldar o espírito.
Para discutir com seriedade esta matéria é essencial fixarmos conhecimento que a maioria deve dominar, e que os que prezam as suas opiniões em forma de publicitação têm obrigação de conhecer. É impossível – se queremos realmente autonomia política – esquecer o seguinte quadro de referências mínimas.
1º. A autonomia não é um benefício em si mesma; é antes uma responsabilidade cidadã que, no seu funcionamento, traduz benefícios. Para se ser inteiramente inteligente, isto é, para se ser verdadeiramente cidadão, ou seja, ainda, para se fazer o esforço de pensar com objetividade (o que, historicamente, nem sempre é fácil para os que têm maiores dificuldades sociais, sobretudo quando se vive quase em modo de sobrevivência) é preciso não perder de vista este princípio fundamental de responsabilidade: é que se esquecermos isso, vamos permitir que a política não tenha os melhores meios de controlo político, e, assim, aqueles que têm acesso ao poder e sejam maus exemplos de cidadão, vão poder usar a autonomia em seu benefício próprio e pelo menos a sua manutenção do poder e não em benefício exclusivo das comunidades açorianas.
2º. Não se pode esquecer: as funções do Representante da República (e do Presidente da República porque também é ator político no sistema de governo regional), não existem para que o Estado controle a Região, e muito menos que o Estado controle os açorianos. Os cargos políticos nacionais, os órgãos de soberania, não existem para controlar os cidadãos. Estes órgãos existem para governar o bem público. A sua existência especificamente na Constituição e incluindo, explicitamente, as suas atribuições e funções existem porque é necessário o cidadão os controlar através dos meios democráticos (eleições, diálogo, análise e critica). As funções do Representante da República, pois,existem porque a Região tem parlamento e governo próprios e produzem leis regionais e políticas regionais próprias, por um lado; e por outra banda, porque essa capacidade de legislar e governar pode produzire produz efetivamente desvios aos padrões nacionais dos portugueses. E, pois, por via disso – que não é pouco – é necessário garantir a constitucionalidade das leis e políticas regionais e garantir os direitos fundamentais, por um lado; e, por outro lado, para reforçar a garantia de que os desvios aos direitos fundamentais criados nas ilhas por leis próprias e políticas próprias continuam a garantir a sua constitucionalidade. As funções do Representante da República, as funções, não o cargo em si, não são apenas fundamentais, são impreteríveis – de outro modo a Região tornar-se-ia uma república das bananas.
3º. Além do sentimento identitário de que a autonomia é uma responsabilidade; além da imperatividade das funções de entidade que faça o controlo político e contencioso das leis regionais de origem autonómica, e que é o que o cargo de Representante da República faz sobretudo; é ainda necessário o mais elementar símbolo de qualquer democracia: que exista um sistema de governo que permita efetivo controlo político. E é isso que não existe no sistema autonómica português. O Representante da República, pelos vetos político e jurídico garante, em parte, a constitucionalidade das leis regionais e,por aqui, também, em parte, os direitos fundamentais. Mas o sistema de governo regional não tem nenhum órgão, nem nenhum mecanismo, de controlo puramente político, em virtude de ações puramente político-governativas e político-parlamentares. Embora o Representante da República tenha funções políticas como aprovar a escolha do Governo Regional, esse poder, efetivamente político, só serve nesse momento; mas depois da tomada de posse, não existe nenhum mecanismo de controlo puramente político. E esse tipo de controlo – que existe para o Estado, mas não existe para a Região – é ainda mais importante na autonomia de modo a reforçar a garantia de que os desvios aos direitos fundamentais criados nas ilhas por leis próprias e políticas próprias continuem a garantir a sua constitucionalidade material.
Como é possível não se perceber isto? Se a Região tem governo e faz leis – em tudo idênticas ao que o Estado faz – como é possível que o Estado tenha mecanismos de controlo político e a Região não tenha? Como é possível a nossa Constituição – que reputamos da mais moderna do mundo por ser a única que começa desde logo a afirmar que a República portuguesa se baeia na dignidade da pessoa humana – mantenha esse impasse democrático?

Arnaldo Ourique  *

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