Diário dos Açores

Memórias de Macau III: Os três círculos

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Disse John Stuart Mill “Sobre a Liberdade” (1806-73) ao defender a liberdade de expressão, “existe uma banalidade epistémica: somos todos falíveis.” Só o descobri já nos quarenta, sempre me sentira infalível na metodologia calculista de pesar os prós e contras, antes de tomar uma decisão. Isto nunca me impedira de não tomar decisão nenhuma. Fazia a arqueologia do pensar e decidia. Desenterrava esqueletos corroídos pelo meu penar. Como François La Rochefoucauld “a gratidão da maioria dos homens não passa de um desejo secreto de receber mais favores.”A vida em Macau era um cadinho de povos, culturas, miscigenação num Oriente exótico, sedutor, mas problemático. Resumia-se a três círculos excêntricos que se tocavam no infinito. Desses, o médio interior era constituído pelos macaenses, sem identidade definida (arreigados à herança cultural lusófona falando e lendo alíngua de Camões, os cosmopolitas falavam chinês e inglês, e nas bordas linguísticas falavam cantonense). Leal de Carvalho escreve
“A cidade no passado abrigou russos brancos, chineses, indonésios, vietnamitas, filipinos e portugueses perseguidos pelos credores, mulheres ciumentas, ideias políticas, espírito de aventura e ambição pelo lucro fácil, refúgio às convulsões político-sociais da região e à loucura da guerra que lançara o mundo em fogo, evasão a problemas sociais ou familiares ou inútil fuga aos demónios de cada um» (in Leal de Carvalho, Requiem para Irina Ostrakoff p. 5).
Fala do convívio interracial com reflexos na moral e nos valores da comunidade:
 «A moral social local, da comunidade macaense e mais da chinesa, consentia a liberal sofisticação de costumes, manifestação viva da interpenetração dos valores culturais da região… fruto da emigração de lindas mulheres, que confundiam os olhares dos latinos, sobretudo as de Xangai. Alguns dos costumes orientais eram bem sedutores para os machos lusos… a milenária cultura chinesa, mais sábia, realista, admitia, na harmoniosa estrutura familiar e sob o austero Império da Primeira Esposa, um número indeterminado de concubinas e até “bichas,” solução cómoda e prática» (in Leal de Carvalho  Os construtores do Império, p. 137).
Havia um círculo exterior menor, dos portugueses, por séculos, exclusivamente constituído pelos que iam e vinham com cada governo a que se acrescentava, aqui e ali, o elemento desgarrado da tropa ou polícia que ficara, constituindo família, deixando-se miscigenar e assimilar pelos costumes locais. Havia estrangeiros que se deixaram encantar, aprendendo as línguas e costumes locais integrados na família lusófona, como é amplamente descrito na obra do citado juiz açoriano Rodrigo Leal de Carvalho que ali viveu 40 anos (1959-1999).
Por último, um enorme círculo, exterior, com motor próprio na economia, os chineses, dependente de Pequim aonde viajava frequentemente, a fim de receber instruções e contar os desvarios do português encarregue nominalmente de governar. Decidiam como, porquê, onde e quando. Davam a entender ao governo a insatisfação quando exorbitava ou tinha uma “ideia brilhante” sem os consultar. Sempre mandaram e determinavam como os súbditos que representavam mais de 96% da população se comportariam. A clique que geria a “Cidade do Santo Nome de Deus de Macau, Não Há Outra Mais Leal” ocultava o facto de descender dos mandarins chineses que, após a Revolução Cultural, determinava o que se podia ou não fazer.
Voltemos aos aspetos culturais. Para as comunidades chinesas, a mulher que namorasse um kwai-lo estava um escalão acima da prostituta. Mesmo que casasse ficava o estigma de algo errado com ela. Os pais podem nem mostrar insatisfação, mas o conceito é preponderante no meio social e refletido na linguagem. A família, altamente hierarquizada, é tradicionalmente dominada pelo macho. A mulher que case com o kwai-lo, e o marido, estão abaixo da escala social. Tecnicamente, deixou de pertencer à família, perdendo os laços. O mesmo com os filhos que não farão parte da família. A mulher casada com um não-chinês, está um degrau acima da prostituta, e nem é considerada como se se tivesse juntado a outra família. A mulher tem menos valor na sociedade do que o homem, todos querem um filho e não uma filha, pelo que se manteve a lei do filho único (preferencialmente varão) até 2015, data em que passou a ser permitido terem dois filhos, ou em 2021 que passou a três. Para os chineses, os brancos não têm laços de família, além de que se divorciam por dá cá aquela palha, e a filha chinesa é um risco maior do que quando vivia em casa.
Se a sogra chinesa tratar o genro como um ser humano só prova a sua amabilidade, ao evitar mostrar ao estúpido estrangeiro quanta raiva lhe vai na alma por ter casado com a filha. Obviamente que se o incluírem numa festividade será um privilégio, como dar boleia aos que precisam. A sogra jamais entenderá a injusta e má sorte de ter um branco para genro. O campo matrimonial é da mais alta responsabilidade e critério dos pais, sendo conhecidos casos de deserdados por não casarem com as escolhidas. Essa falta de obediência é a culpa a acarretar pelos filhos e os torna responsáveis por quantas mortes ocorram ou problemas de saúde dos pais e parentes. Este tipo de normas repercute-se nos países de destino das famílias emigradas em arreigada preservação das normas rurais das zonas de origem.
Lembro que mesmo que lesse e falasse cantonês fluentemente, o que nunca foi o caso, jamais seria considerado “um deles.” Sempre me limitei a ver, de fora para dentro, a sociedade que me rodeava, tentando não fazer juízos de valor antes me limitando a apreender. Nunca namorei, formal ou informalmente, uma chinesa e sabia que tal me estaria vedado ab initio. Nem todas estas caraterísticas se impuseram no seio macaense, mas, se telefonasse para uma, cujos pais não conhecesse, seria submetido ao interrogatório da mãe tipicamente chinesa:

“Quem sou?
Como conheci a filha dela?
De onde era a minha família?
Se era casado?
Se os meus pais eram proprietários ou se trabalhavam?
Qual a profissão do meu pai?
O que estudava (se andava a estudar)?
Ou em que trabalhava (se andava a trabalhar)?
Porque é que tinha a ousadia de lhe telefonar para casa…

E por aí adiante, num chorrilho de perguntas sem tempo para réplica, previamente desnecessária, as respostas nunca seriam satisfatórias porque seria sempre um kwai-lo.
 Os olhos não se desviavam das cabaias de seda, Cheong-sam, justíssimas, de cores vivas e grandes aberturas laterais até ao cimo da alva coxa, bem torneada, a deixar antever mistérios por decifrar e paraísos por descobrir. A queda inevitável pelas belezas asiáticas, bem como a flexibilidade dos costumes funcionam como motivação para a sua aceitação. A atração pela mulher oriental sobreleva qualquer interesse, a vontade de descobrir novos mundos em corpos de pele sedosa sensual, no prazer hedonista conquistaram-me.
Cito Leal de Carvalho:
“A interpenetração dos valores culturais, a influência no meio macaísta dos usos e costumes que instituíra na Colónia o concubinato com o reconhecimento social e legal… O temperamento fácil das gentes, as noites quentes e sensuais dos Trópicos tinham adoçado a rigidez de fachada vitoriana e marialva, da moral sexual de importação lusíada e conferido à sociedade macaísta, uma tolerância e sofisticação e a admissibilidade de pequenas infrações sexuais, aventuras pré-maritais com ou sem sequência matrimonial, recatados adultérios» (in O Senhor Conde p. 214).
Devia a mulher ser sempre nova, esguia, bem torneada, na cabaia muito justa e brilhante, colarinho duro e alto, e grandes aberturas laterais até meia-coxa» (O Senhor Conde p. 52).
Outros sentiam o mesmo fascínio por aquelas mulheres. E dançavam bem, estavam perfumadas, tinham peles perfeitas e corpos esculturais, de feições enigmáticas, escondendo sabe-se lá que emoções ou sentimentos (O Senhor Conde p. 53).
É ressaltada a beleza serena e enigmática da mulher oriental, a sua sensualidade e a suavidade da pele, uma complexion de pétala de rosa (in Ao Serviço de Sua Majestade p. 602). A resignação ancestral da mulher oriental, habituada à natureza traiçoeira dos homens em geral e dos europeus em particular (Ao Serviço de Sua Majestade: 323) fizeram-se muitos casamentos com reinóis, donde provieram os macaenses.”
As macaenses acabaram por assumir lugar de destaque na sociedade. Tudo servia de pano de fundo a emoções, paixões e desenfreamentos que assolavam os jovens e a mim em particular. Tentar à distância de décadas reviver sentimentos é doloroso e pode carecer de fidelidade. Surgem enevoadas, memórias mais róseas do que talvez fossem. Os elementos negativos da solidão, o afastamento do lar familiar, a necessidade de conjugar novos verbos, novas famílias, novos sentimentos e emoções sobrepunham-se à mera excitação pelas sucessivas descobertas novos mundos, novos pensares, que preenchiam dias e noites.


*Jornalista, Membro Honorário Vitalício 297713
(Australian Journalists´ Association MEAA)

Chrys Chrystello*

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