Diário dos Açores

As crianças da Ribeira Quente

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Se existe local no mundo que mais me marcou e ajudou a formar o meu caráter foi a Ribeira Quente.
Nos finais dos anos cinquenta e na primeira metade da década de 60 era normal todos os anos acompanhar o meu avô paterno em duas idas por ano à Ribeira Qente que eram excecionais, a primeira tinha como fim ele ir abastecer-se lá de vinho de cheiro, comprando um pequeno barril, que depois na nossa casa eu ajudava o meu avô a engarrafar e a lacrar as rolhas das garrafas com cera que não raras as vezes me queimava os dedos. Esta viagem era feita na nossa Charrete puxada pelo meu grande amigo cavalo de nome Russo. A ligação que tinha com o Russo era tão grande que o motorista da camioneta do norte quando eu regressava de Ponta Delgada para as Furnas, já que fui obrigado nos primeiros anos da década de sessenta a mudar-me para a cidade para poder vir estudar no ensino secundário, descíamos na camioneta as pedras do Galego ali por cima da fábrica da espadana na Chã da Ribeira, que hoje já não existe, onde o Russo residia, alertava-me para os grunhidos que o cavalo estava a fazer, e dizia “rapazinho o teu cavalo está a conhecer-te”. Esta deslocação na Charrete à Ribeira Quente era fantástica, mas muito breve, logo, não dava para me aperceber da realidade social que se vivia naquela freguesia marítima, mas sim já dava para aprender que a vinha e o vinho casavam bem com os solos e os ares das zonas costeiras marítimas, o que não acontecia no Vale das Furnas.
A segunda situação era quando acompanhava o meu avô e os outros dois trabalhadores que conduziam o gado da Achada das Furnas até à praia da Ribeira Quente para as vacas do Senhor João Luiz da Câmara  irem “matar os parasitas e abrir o apetite” na praia, era de facto um ritual verdadeiramente protetor dos animais e revolucionário para a época, num tempo em que os medicamentos para os animais era muito limitada. Nesta deslocação à Ribeira Quente por ser mais demorada, atravessar a localidade e tendo como cenário a praia da Ribeira Quente, já dava para ter uma ideia das dificuldades económicas e sociais em que viviam as populações.
Mas foi já posteriormente com o meu Pai que tinha uma cultura de fazer piqueniques verdadeiramente pioneira nos Açores  que na segunda metade dos anos 60 e seguintes, muito facilitada pelo facto de ele ter um meio de transporte que o seu estatuto de taxista lhe permitia, me apercebi a fundo de como muitas crianças da Ribeira Quente viviam e como esta situação me incomodava e até revoltava. Todos os pretextos serviam para meu Pai fazer um piquenique e a improvisação da ementa também era frequente, de tal maneira que quando não era planeada, uns chouriços, uns torresmos e uns ovos cozidos eram suficientes para fazer uma grande festa, mas quando era programada metia sempre umas cavalas assadas ou uma serra assada ou então um coelho bravo à caçador que minha mãe cozinhava magistralmente. Os locais de eleição dele para se fazerem os piquenique era a Tronqueira do Nordeste, o Salto do Cavalo, uma mata que temos no Serrado da Urze nas Furnas e na praia do Fogo na Ribeira Quente, freguesia de quem ele gostava muito. Nesta altura praticamente nemhum humano frequentava a praia para tomar banho, mesmo para nós o mar servia apenas para molhar os pés e ver aquele imenso horizonte que no nosso imagnário nos abria novos mundos. E era precisamente quando estávamos na praia a fazer o piquenique que apareciam imensas crianças, semi nuas, descalças, com umas barrigas inchadas, com os dentes amarelos e podres, resultado da qualidade da água pública que então abastecia a freguesia da Ribeira Quente, a olharem para nôs, sem pedirem esmola, demonstrando uma dignidade que então me impressionava muito, paradas à volta da nossa mesa improvisada e em silêncio. Era impossível continuar a degustar aqueles ovos cozidos, ou outra coisa qualquer sem repartir, e mesmo tendo a consciência que aquele nosso ato contribuía muito pouco para resolver um problema que era estrutural, já que quando regressávamos à praia da Ribeira Quente a cena repetia-se.
Foi esta realidade que explicou que nos finais dos anos 60 e nos primeiros anos da década de 70 do século passado e aproveitando uma abertura que a emigração possibilitou, tantos e em tão pouco tempo emigrassem para os Estados Unidos e para o Canadá, de tal forma que os Açores bateram naqueles anos recordes da emigração portuguesa legal Depois com o 25 de abril e a Autonomia Democrática, mesmo com todos os seus erros, e com a consciência que podíamos ter tido resultados bem melhores, designadamente na educação e na economia, criaram-se as condições para que hoje quando vou à bonita praia da Ribeira Quente tomar banho, ou simplesmente ver o mar, jamais veja aquelas crianças, a não ser na minha memória e nos meus piores sonhos. Mas esta realidade existiu.
Hoje o problema é outro e que se traduz em existirem cada vez menos crianças nas nossas freguesias, nas nossa vilas e nas nossas cidades, mas esta é outra história. A que acresce persistirem ainda taxas de pobreza que nos devem incomodar e que tem de ser corrigidas com mais educação, mais competitividade e mais desenvolvimento.

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